Imagine que entrava num avião e levantava voo. E aterrava. À chegada, todos os passageiros ficavam retidos durante dias sem poder sair de um ‘hangar’, e sem lhes explicarem porquê. Quando finalmente explicavam, a razão era tão absurda quanto inexplicável: ao que parece, todos vocês, os passageiros desse voo que acabara de aterrar, já tinham aterrado… há 3 meses. Todos vocês tinham um duplo – que não era um gémeo, eram vocês – a viver a vossa vida (ou, em certos casos, a vossa morte) há 3 meses. É esta a ‘premissa’ de ‘A Anomalia’, de Hervé Le Tellier.
E agora? Que fazer com os duplos? E quem é o duplo e quem é o original? E no caso de haver filhos, quem é filho de quem? Quem é a verdadeira mulher ou marido de quem? Quem morreu e quem ficou? E, a pergunta principal, como raio é que esta ‘duplicação’ aconteceu?
‘A Anomalia’ parece ao mesmo tempo um filme de ação (estamos mesmo a ver as imagens) e um tratado filosófico. Seguimos a vida das pessoas ‘duplicadas’ – um assassino a soldo, um popstar no armário, uma advogada de topo, um escritor quase desconhecido, uma atriz de província – e ao mesmo tempo o autor faz-nos pensar sobre muitos temas incómodos. E se a realidade não for o que pensamos? E se formos todos criações de alguém? Importa saber quem somos ou o que importa é aquilo que sentimos e o que fazemos da nossa vida, verdadeira ou falsa, duplicada ou cópia?
As reflexões sucedem-se como cópias umas das outras até que, quando se pensa que finalmente se conseguiu, à boa maneira dos humanos, re-arrumar o mundo e fazer qualquer tipo de sentido da desordem, aparece outra ‘anomalia’…
Um livro que passou um bocado despercebido em Portugal mas que foi um sucesso por onde passou, e de facto merece-o, ao sucesso. Por um lado, assusta-nos, o que é sempre uma boa ideia para nos fazer pensar. Por outro, faz-nos pensar (pronto, que é sempre uma boa forma de nos assustar). Seja como for, é uma excelente leitura para quem goste de pensar no que anda aqui a fazer, mesmo que não se chegue a conclusão nenhuma.
‘A Anomalia’ – Hervé Le Tellier, Ed. Presença, E16,90