*Artigo publicado originalmente na revista ACTIVA de setembro de 2021
Não é médica, mas coordena o grupo de trabalho da Escola Nacional de Saúde Pública, que criou um projeto que, desde março de 2020, avalia a forma como a Covid 19 tem tido impacto na sociedade, o que preocupa os portugueses e como temos lidado com os desafios desta nova realidade. Carla Nunes, licenciada em Matemática e Estatística, além de ser diretora da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) é professora catedrática de Estatística e Coordenadora da Comissão Científica do Programa de Doutoramento em Saúde Pública. Pergaminhos que nos permitiram antever uma entrevista* cheia de informação interessante e que a realidade confirmou.
Fale-nos um pouco deste projeto da ENSP, criado para responder aos desafios da pandemia…
Para aumentarmos a nossa utilidade em termos de investigação covid criámos um projeto a que demos o nome de Barómetro Covid 19. Este projeto tem 4 áreas específicas de trabalho: epidemiologia; políticas e intervenções; saúde ocupacional e, por último, a mais conhecida, as perceções sociais da Covid 19. Trata-se de um questionário online, lançado logo a 21 de março de 2020, baseado em redes sociais e que tem seguido muitas vertentes da perceção dos portugueses sobre a covid. Com isto tentámos responder a várias necessidades que considerámos úteis no controlo da pandemia.
Como está a saúde mental dos portugueses?
Tem havido grandes oscilações de estados, como ‘ansioso, agitado, triste’. Logo na primeira onde houve, obviamente, percentagens muito elevadas de pessoas a dizerem que todos os dias ou quase todos os dias se sentiam mentalmente em baixo devido às medidas de distanciamento físico. Depois melhorou no verão, voltou a piorar em outubro, novembro e no natal. E está estável desde março de 2021.
Quem sofre mais?
Os mais jovens – dos 16 aos 25 anos – têm dito sempre, consistentemente, que estão em pior estado de saúde mental. Estiveram, desde sempre, desfasados das outras faixas etárias. Já temos os resultados da semana passada*, e 30% dos mais jovens dizem que todos os dias ou quase todos os dias se sentem agitados, ansiosos, tristes, devido às medidas de distanciamento físico. Os mais velhos também, mas a reportarem níveis mais baixos que os mais jovens desde o início. Os mais velhos têm aguentado melhor este nível de ansiedade do que os mais jovens.
Há distinção entre homens e mulheres?
Sim, as mulheres reportam mais ansiedade e tristeza. E quando perguntámos especificamente o porquê, o equilíbrio trabalho-casa-filhos foi o mais indicado.
O que é apontado como o fator que nos provoca mais ansiedade e tristeza?
O afastamento, o evitar confraternizar com família e amigos, é desde sempre aquilo que os portugueses acham mais difícil. Logo do início começou a surgir e a afastar-se muito de todas as outras medidas.
Mesmo com estas medidas menos restritivas?
Na semana passada*, 57% das pessoas disseram que era difícil ou muito difícil evitar confraternizar com familiares e amigos. E foram novamente os mais jovens (62%) a classificar essa medida como difícil ou muito difícil. Já nos mais velhos (>65 anos) foi 47%, uma grande diferença.
É possível comparar a nossa situação à de outros países?
Nos países do sul, como Itália ou Espanha, por exemplo, o impacto também foi mais forte nas relações familiares, mais que nos países nórdicos. Na primeira fase da pandemia houve uma diferença clara dos comportamentos dos países do sul, mais relacionados com esplanadas, com a confraternização em família e amigos, do que nos países nórdicos, onde essas coisas têm um formato diferente. Um exemplo dessa diferença cultural foi o que aconteceu em Itália, logo no início, quando se tentou controlar a epidemia no norte, fechando a região, muitos italianos tentaram logo ir ter com as suas famílias a sul. Querer estar junto da família é uma coisa muito mediterrânica, muito nossa, digamos assim. Mas houve diferenças até no teletrabalho, nos países do norte este regime está mais normalizado e também é usual estarem com as crianças em casa mais cedo.
E em relação à saúde física,que impacto teve a pandemia?
Os nossos comportamentos também foram alterados, em termos de atividade física, alimentação, álcool e tabaco. Nós fizemos uma análise desde julho de 2020 até maio de 2021, e tínhamos 53% das pessoas a dizer que tinham praticado menos atividade física, 27% a dizer que comeram alimentos mais calóricos ou com mais gordura, mas também tivemos 28% a dizer que se alimentaram de forma saudável. Em relação ao álcool, 11,4% afirmou consumir mais do que antes da pandemia, e quanto ao tabaco, 12,3% passou a fumar mais. E isto teve oscilações, na primeira onda houve coisas que correram melhor em termos de sofrimento do que na onda em janeiro de 2021, esta teve impactos mais graves nos comportamentos e saúde mental, foi mais difícil de ser ultrapassada. Há outro dado interessante, é que no início do verão do ano passado, quando perguntámos às pessoas o que esperavam em termos de normalidade, as pessoas estavam mais otimistas, diziam ‘vamos para o verão e isto passa’. Neste momento* vamos de férias com a sensação de que isto não está terminado, 90% das pessoas diz que a normalidade, seja o que isso for, só poderá ser atingida em dezembro ou para o ano, há mais dúvidas.
Somos cumpridores das recomendações sanitárias?
Na generalidade, sim. Na primeira onda fomos cumpridores de tudo, tínhamos medo, mesmo que nos mandassem sair nós não saíamos, isso foi muito interessante, porque nós confinámos antes de nos mandarem confinar. Muitas escolas fecharam antes de serem obrigadas a fechar por pressão da própria sociedade. Ou seja, nós, no geral, somos cumpridores, mas claro que há sempre festas, grupos, coisas que não correm bem, mas a maioria é pontual. No entanto há que perceber que quando acontecem podem ter impactos muito fortes e dar início a uma cadeia de transmissão alargada.Posso dar-lhe valores, por exemplo, no manter a distância de 2m, na última quinzena*, há 31,4% que diz que é muito difícil ou difícil, e tem estado a subir desde fevereiro deste ano. Fica sempre mais difícil quando temos menor perceção de risco e quando a situação está mais controlada. Quanto às máscaras, de uma forma geral, temos 16,8% a dizer que é difícil ou muito difícil. E aqui quem diz que é mais difícil são os 26-45 anos, da idade ativa. A lavagem das mãos já é um dado garantido, pelo menos do que é reportado, toda a gente anda sempre a lavar as mãos, o único desafio é os espaços continuarem a promover este tipo de comportamentos, disponibilizando o álcool gel. O grande desafio que nós temos neste momento é a confraternização.
Julgava que o uso de máscara era mais contestado…
Pelo que me apercebo, as pessoas já não questionam o uso das máscaras, e usamo-las naturalmente, mas os tais momentos de confraternização são um problema. Aí é que nós baixamos a guarda, nos momentos de refeição, outra característica muito sulista. Nós não sabemos encontrar-nos sem ser para comer, em família e amigos, há sempre um almoço, um café…
Já antes da pandemia havia um consumo de ansiolíticos e antidepressivos muito elevado, e agora?
Este foi um dos indicadores que começámos logo a medir em março. Nessa altura, 84% das pessoas não tomavam ansiolíticos, e 16% tomava – desta percentagem, 12% continuou com a dosagem anterior; 1,4% aumentou a dosagem e 2,1% começou a tomar. Se formos ver agora, 73% das pessoas dizem não tomar esses medicamentos, temos 19% que toma a mesma dosagem e 4,1% a iniciar a toma de ansiolíticos. É preciso dizer que ao longo destes 18 meses o grupo não é exatamente o mesmo, as pessoas podem entrar e sair dos inquéritos e isto por vezes traz oscilações.
A vacinação teve impacto na saúde mental?
Claro, temos falado muito na motivação e na hesitação, mas globalmente sempre foi assumido pelos portugueses que a vacinação é uma coisa boa, e também é agora assumido por todos que tem impacto, que é uma oportunidade de retomar a nossa normalidade, a economia e a socialização. Mas volto a dizer, 90% dos portugueses dizem que pode ser a luz ao fundo do túnel mas não é a cura imediata, que em dezembro ou para o próximo ano é que a vida volta a alguma normalidade. E é bom que haja essa consciência.
Há ideia de que os jovens não querem ser vacinados, mas não é bem assim…
Começámos a fazer os estudos da resistência à vacinação quando ainda nem existia vacina e havia muita gente resistente, no sentido de não saber se tomaria ou não tomaria, os valores de indecisão andavam à volta dos 60%. Esse valor mais tarde desceu e estabilizou nos 15%, e aqui estão os que dizem que não vão tomar e os que ainda não sabem. Quando vamos fazer a nossa análise mais detalhada nos não vacinados para perceber o que se passa, vemos que os não vacinados são, ou os resistentes mais velhos, ou os mais jovens que ainda não tiveram oportunidade de serem vacinados.
Não é porque não querem, é porque ainda não chegou a vez de eles serem vacinados?
Dos 16 aos 25 anos, 85% diz que vai tomar a vacina, 7% não vai tomar e outros 7% ainda não decidiu. O próprio plano de vacinação desequilibra as análises entre vacinados e não vacinados porque começou-se pelas faixas etárias mais velhas. Os mais novos podem não ter a perceção do risco de ter doença severa – e se calhar aí há uma mensagem a trabalhar – mas não é por isso que eles vão ser resistentes à toma, porque também são eles os que mais sofrem com os confinamentos, eles querem é desconfinar.
Com os dados que tem hoje* que alerta faria para setembro?
Ao dia de hoje*, e falando para setembro, que é uma eternidade em tempos de covid, penso que vamos desconfinar mas que vai ser mantido o distanciamento, o uso das máscaras, a lavagem das mãos. Acho que isso vai ser uma realidade no regresso às escolas e ao trabalho presencial, e que no caso de se ter sintomas suspeitos – febre, dores musculares, pingo no nariz, etc. – é para ficar em casa. Em relação às escolas, vamos voltar com máscaras, com o distanciamento possível, com os dispositivos para lavar as mãos, e às salas de aula com as janelas abertas. Pelo menos até percebermos qual é o impacto do outono-inverno pois a estação traz os espaços fechados, gripes, sobrecarga dos serviços… se há novas variantes, o que obviamente provoca maior stresse. Portanto, ao dia de hoje, acho que é este o mundo que se prevê, de setembro a dezembro pelo menos.
*entrevista realizada a 29 de julho de 2021 para a edição de setembro desse ano