Fotos: Ricardo Santos


Junco. Junco. Junco. Repito vezes sem conta, como uma criança que está a aprender a lição. “Ainda no outro dia saiu uma notícia em que escreviam cestas de vime. Não são cestas de vime. São de junco.” Não vá eu esquecer, Esperança Vitória repete-o várias vezes ao longo da tarde que afirma ter sido ‘inesquecível’. Afinal, apesar das suas cestas (de junco!) andarem nas bocas do mundo da moda, saltos altos só aqueles que tem dado nos negócios, desde que lançou a Victoria Handmade – Novas Artes em Junco, há nove anos. Esperança Vitória transformou a arte da cestaria que aprendeu com os pais num negócio que vinga dentro e fora de Portugal, com vendas repartidas entre online, showroom e pontos de venda em França, Suíça e Canadá.

Em cima da bancada, os exemplares da Vogue britânica, onde a marca faz notícia várias vezes, são prova do reconhecimento internacional de que goza não só na Europa como em países como os Estados Unidos, Austrália e Emirados Árabes Unidos, muito graças ao Instagram. “É uma grande porta para o mercado internacional, já o Facebook funciona mais cá dentro.” Estamos em Corredoura, Porto de Mós, no atelier que representa a mais difícil decisão de negócios que Esperança já tomou: “Abrir a porta ao público, pôr cá para fora um projeto que começou ainda dentro da casa da minha avó. Um risco, pela desvalorização do ofício e pelo caminho que queríamos percorrer.”


OPERAÇÃO DE RESGATE

Sou interrompida pela pata do Herói, que me lembra que a pausa da festa já vai longa. O Serra da Estrela resgatado da rua há quatro anos é grande mas quem manda é Nina, uma arraçada de Pincher, também salva do abandono, atenta mas menos dada a confianças. Esperança Vitória fala com entusiasmo dos seus fiéis companheiros, também parceiros de negócio, já que é ao atelier/showroom que chamam casa. Victoria Handmade é também a história de um resgate, de um ofício em vias de extinção, à precariedade e insustentabilidade. É Esperança que agora vai tecendo um novo capítulo de uma velha tradição familiar, alimentado em parte por um rejuvenescido apreço nacional pelo artesanato e pela portugalidade.

Esperança Vitória é natural de Castanheira, aldeia no concelho de Alcobaça com grande tradição na cestaria de onde é também, a título de curiosidade, outro Toino, que não seu pai, e este Toino Abel, também conhecido no negócio, de uma família mais ligada ao comércio do que ao fabrico das cestas. “Cada casa cada tear. Não havia família que não soubesse fazer pelo menos um dos processos envolvidos na cestaria.” Esperança não se lembra de ter propriamente aprendido o ofício, “as minhas primeiras memórias são da minha mãe a tecer, houve um dia em que simplesmente subimos para cima de um tijolo para chegar ao tear e começámos a trabalhar”, mas recorda-se da aversão que lhe sentia. “Para começar não era remunerado, e depois era um trabalho árduo. Tivemos uma infância de trabalho mas hoje olhamos para trás e conseguimos ver as mais-valias, temos competências que não teriam sido adquiridas de outra maneira.”



A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO JUNCO

Perante uma arte incapaz de lhes garantir o sustento, as quatro irmãs acabariam por abandonar o ofício, mas no caso de Esperança, a boa filha a casa tornou.

Muito mais tarde. Quando tomou a decisão de que estava na hora de “tirar o projeto da gaveta e revolucionar a cestaria de junco”, trabalhava com idosos na Casa da Misericórdia de Porto de Mós. E a idade aqui também pesou. “Estava com 38 anos, ou me conformava ou dava o salto para um projeto meu, que me fizesse sentir mais realizada.” Regressou ao passado para dar à cestaria um futuro, com todas as dificuldades que ressoavam. A maior? “A desvalorização desta arte ainda que tenha vindo a melhorar. Ainda hoje há pessoas de uma faixa etária bastante avançada a trabalhar nisto, como complemento da reforma, porque as pessoas jovens não conseguem viver da cestaria.” Não é portanto de estranhar que Esperança não tenha dúvidas em relação à sua maior vitória: “Conseguir que quem trabalha comigo tenha toda a dignidade em termos de mercado de trabalho. Até agora não era possível ter um emprego dentro desta área.” E é da mesma matéria que também é feito o seu maior fracasso: “Sentir que não podemos resolver todos os problemas deste mundo e conseguir que todas as pessoas tenham essa dignidade.”


ALTA VERSATILIDADE

Esperança Vitória é mais reservada quando se trata de falar de si, chega mesmo a acusar-me, bem humorada, de estar a fazer de Daniel Oliveira quando o assunto é mais pessoal. O que dizem os seus olhos não fico a saber, mas as suas mãos (e discurso!) não deixam dúvidas, dizem claramente que é uma mulher de trabalho.

“Não me mete medo”, diz. Não consigo que me diga a sua área favorita, mas é neste silêncio que ouço o seu segredo para o sucesso: “Empenho e dedicação, termos o mesmo à-vontade em qualquer área, quer seja a tecer, a varrer ou em qualquer outra tarefa.” E não é conversa, a sua versatilidade ecoa por todos os recantos do negócio do fabrico à gestão, mesmo em tarefas até agora exclusivamente masculinas. Esperança Vitória acredita ser a única mulher em Portugal a colocar as asas nas cestas, essas, sim, de vime, uma matéria-prima mais difícil de manusear do que o junco.


SUCESSO, DISSERAM ELAS

Até há pouco tempo, eles dedicavam-se ao junco e à colocação das asas, elas cosiam e teciam. Mas aqui tudo está sob o domínio feminino.

Não fosse Esperança a terceira de quatro raparigas.

Na empresa, tem ao seu lado mais duas mulheres fortes (três, se contarmos com Nina), a irmã mais velha, Carla, e a filha, Daniela, formada em design gráfico e responsável pela imagem da Victoria Handmade, site e redes sociais.

Logo percebemos o motivo da indignação de Herói e Nina, agora impedidos de entrar por um obstáculo de madeira. Daniela atende uma família de Lisboa, mãe e filha estão visivelmente felizes. É esta felicidade um dos combustíveis que move a nossa entrevistada.

Complete a frase “tenho esperança de…”, tinha eu pedido minutos antes à empreendedora, à laia de Daniel Oliveira. “…Continuar a trabalhar com este empenho e dedicação e a levar felicidade à vida das pessoas que recebem as nossas peças.” Vitória, Vitória, acabou-se a história. Ou parte dela, que a arte da Esperança está longe de morrer.

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