Foto Ricardo Santos

Depois de 20 anos como advogada, percebeu que não era aquela a vida que queria. Largou tudo e foi em busca de si própria. Estudou psicologia, tornou-se terapeuta transgeracional e hoje ajuda muitas pessoas a descobrirem como os traumas da nossa família nos marcam mais do que pensamos. Há uns tempos, um terrivel acidente que a afetou a ela, ao marido e às filhas mostrou-lhe que estava no bom caminho. É uma mulher feliz e afirma que a sua quase-morte lhe ensinou a nunca adiar o prazer.

Vamos começar pelo princípio: como é que foi a sua infância?

Nasci em Lisboa, a 20 de Dezembro de 1975. Escusado será dizer que ninguém ia às minhas festas de anos (risos). Tive uma infância muito feliz. Os meus pais divorciaram-se quando eu tinha 2 anos. Tenho dois meios irmãos (não gosto nada desta terminologia). Aliás, a minha irmã Marta tem a idade da minha filha mais velha. Lembro-me de estar com a Marta ao colo e grávida da Maria.

Eu andava no Liceu Francês, e na altura ninguém tinha os pais separados. Mas a minha mãe tinha muitas amigas com filhos, e a nossa casa estava sempre cheia.

Até que aconteceu a primeira tragédia da sua vida, não foi?

Vivi com a minha mãe até aos 10, quando ela morreu num desastre de automóvel. Era muito meiga, não me lembro de alguma vez me ter ralhado. Hoje que tenho 47 anos, já olho com distanciamento para essa dor enorme. Muitas vezes os lutos que não são processados, olhados, chorados, transformam-se em feridas abertas para a vida toda. Até podem cicatrizar, mas quem tem cicatrizes sabe que à volta da cicatriz os nervos ficam desenssibilizados. Com a mente acontece a mesma coisa. Claro que temos de sobreviver, e fazêmo-lo insensibilizando-nos, mas quando se tem dez anos, esse processo não é consciente.

Como é que se lida com isso aos 10 anos?

Foi terrível. Aos 10 anos ainda precisamos muito de uma mãe, e além de uma mãe perdi todo o meu núcleo familiar. O meu irmão ficou com o pai dele, o meu padrasto, e eu fui viver com o meu pai para a Caparica.Vivemos os dois sozinhos durantge dois anos, até aos meus 12 anos. Foi dos momentos mais dolorosos mas mais bonitos da minha vida. Claro que eu só consigo dizer isto muitos anos depois, muita psicoterapia depois. Numa família, quando acontece uma morte muito traumática – e a minha mãe morreu aos 38 anos e deixou dois filhos muito pequenos – isso é sentido como uma tragédia e é muito difícil as pessoas fazerem o luto. As irmãs da minha mãe nunca o fizeram, o meu pai também não, ninguém conseguia falar-me nela. Às vezes essa é a única maneira de se andar para a frente. Mas não dá para andar para a frente a vida toda. E a história da minha mãe transformou-se num tabu. Sempre com muito amor por mim, as famílias fazem isso para proteger as crianças, e isto passou-se há 37 anos atrás, quando ninguém falava nestas coisas, mas na verdade não funciona.

Depois disso, calculo que se mude…

Fui-me tornando insensível, porque era como se parte da minha alma tivesse morrido. Essa insensibilidade permitia-me viver uma vida parecida com a das minhas amigas. Saía à noite, tinha boas notas, estava integrada. Eu precisava de ser igual, era muito importante não me destacar. Por exemplo, nos primeiros dias de aulas tinhamos que escrever numa folha o nome da mãe e do pai, qo eu fazem, os contactos, e aquilo para mim era um sofrimento.Eu escrevia tudo e esperava que não me fizessem mais perguntas. Mas lá está, isto foi há 30 e tal anos atrás, não se falava em empatia nem nada disso. O mundo mudou muito, e eu fico mesmo feliz porque isto que estamos aqui a fazer, e até as redes sociais, mostram que é possível sair de sítios muito escuros, é possível transformarmos dores em alegria.

Consegue fazer isso?

Consigo. E eu sou uma pessoa comum. Quando me dizem ‘és uma guerreira’ encolho-me. Sim, sou uma guerreira, mas sou uma mulher real. Praticamente só atendo mulheres, e falam muito das mulheres das famílias delas. ‘Ai a minha avó separou-se com 40 anos, era uma guerreira’. Ora isto descontextualizado soa bastante diferente. Uma pessoa separar-se hoje ou há 50 anos, não é nada a mesma coisa. Mas nós, as descendentes, dizemos ‘foi uma guerreira, nunca chorou’. Imagine o que esta mulher devia ter sofrido, e ainda por cima sem nunca chorar! Portanto, guerreiras seremos sempre, mas guerreiras reais, com as nossas dores, as nossas lágrimas, os nossos dias maus.

É importante aceitarmos esta fragilidade?

Sim, aceitarmos as falhas. Porque é a fragilidade que nos vai tornar fortes. Eu mesma venho de duas famílias matriarcais, onde as mulheres sempre tiveram muita preponderância, e sempre ouvi ‘vamos seguir em frente, de cabeça erguida’. Também nunca as vi chorar. E a minha avó também teve uma história muito dolorosa, mas havia quase aquele tabu das emoções, deviamos ser orgulhosas e altivas. Aliás, a minha alcunha na família era ‘Sarinha chorona’. Porque eu não conseguia falar, mas pelo menos conseguia chorar. Falar sobre o que me atormentava só consegui fazê-lo aos 30, com psicoterapia. Mas tudo tem o seu tempo.

Hoje queremos tudo a correr…

O problema é que a nossa alma não é feita a correr. Às vezes tenho pessoas que em duas horas querem curar-se de vidas inteiras de dor, ora isso não funciona assim. Mesmo eu continuo ainda hoje o meu trabalho interior. O Jung dizia que o terapeuta só consegue ir com o paciente onde ele próprio já foi.

Bem, ficámos na sua juventude…

Fui estudar advocacia. Costumo dizer que a advocacia foi uma forma de reparar um trauma familiar. Aliás, um dos lemas da terapi transgeracional é ‘diz-me o que fazes e eu dir-te-ei que trauma transgeracional reparas’. Na minha família, o mais comum são pessoas licenciadasem direito. Ou seja, defendemos temas de justiça. Claro que eu na altura não tinha esta perceção, mas hoje vejo que estudei direito como uma forma de reparar uma injustiça que havia na família. Em relação a muita coisa. Pais que se zangam com filhos, pais ou mães que morrem prematuramente (o pai da minha mãe também morreu muito cedo, deixando a minha avó com filhos pequeninos). Tudo isso deixava enormes tristezas, e deixava nas mulheres aquela ideia de que tinham de estar preparadas para seguir sozinhas porque os homens falham, morrem, deixam-nos.

Daí a ideia das guerreiras…

Daí a ideia das guerreiras. Eu quero partilhar a vida, não quero viver aqui sozinha. Mas este mito feminino é uma dor coletiva, penso que não só da minha família mas da história das mulheres. Por isso é que para nós é tão importante sermos independentes, porque vimos o que aconteceu a outras mulheres por não o serem. Santo Agostinho dizia ‘Os mortos são invisíveis mas não são ausentes’. Há autores que falam em fantasmas como uma energia que depois nos assombra. O que diz a epigenética  (área que investiga como os estímulos ambientais podem ativar determinados genes e silenciar outros) é que esses fantasmas – as dores, os traumas, os segredos, as histórias de vida, a violência, os incestos, as violações, os problemas de heranças, as zangas – acabam por ser passados de geração em geração. Isto acontece não através dos genes – o meu ADN não se altera pela tristeza da minha avó – mas é como se ficassemos com marcadores em cima do ADN que também são transportados. Já há imensa investigação nesse sentido. Por exemplo, fizeram experiências com ratos. O ratinho avô é picado com um alfinete, e sempre que é picado liberta-se uma fragrância. Mesmo que já não seja picado, sempre que se liberta a fragrância, o ratinho fica em stress. O interessante é que os ratinhos netos, quando cheiram esta fragrância, também ficam em stresse.

Como é que isto é estudado nas pessoas?

Claro que como não podemos picar humanos, nas pessoas isto é estudado de outra maneira. Por exemplo, com as três gerações de vítimas do holocausto ou do genocídio do Ruanda. E provou-se que os netos, mesmo quando os avós não tinham partilhado nada da sua história com eles, tinham níveis de stress e de cortisol diferentes dos habituais. Há inclusive registos de netos que têm sonhos recorrentes de traumas que aconteceram na verdade aos seus avós – que nunca lhes contaram nada sobre isso. Isto é muito interessante.

Como é que isto se explica?

Os terapeutas transgeracionais explicam isto através do inconsciente familiar que regista os traumas de cada família. Portanto, além do inconsciente individual e coletivo, também temos o familiar. Isto acontece para nos defender. O nosso cérebro não distingue muito bem entre o que não é real e não é, regista tudo, e se há informação que nos avisa de um perigo, ele vai registá-la. Imagine por exemplo que teve uma bisavó que morreu a dar à luz. Se calhar vai decidir não ter filhos, mesmo que não se lembre dessa história ou nem sequer a conheça. Mas claro que numa família as coisas não têm o mesmo impacto em todos os elementos. Eu tenho duas filhas e vejo que são as duas completamente diferentes, por exemplo. Não sabemos porque é que umas pessoas herdam certos traumas e outras não. Mas também é verdade que como mães e pais projetamos coisas totalmente diferentes nos filhos, somos pessoas totalmente diferentes com uns e com outros.

Então lá seguiu direito…

Sim, fiz o curso e até gostei. Mas era um peso, não era uma coisa que eu fazia levemente. Porque, não me tendo sido imposto, não era uma coisa minha.Estive ligada ao direito durante 20 anos. Primeiro estive num escritório de advogados mas não me revia naquilo, mudei de escritório para um mais pequeno, andei ali uns anos ligada à finança, sempre com imenso stresse, até fiz um mestrado em finança! Até sonhava com ações (risos). Mas também não gostava verdadeiramente daquilo e então mudei para o Santander, sempre a progredir, sempre com melhores oportunidades e sempre sem sentir que pertencia ali. Passava o tempo angustiada apensar ‘qualquer dia morro e não fiz nada na vida’. Mas não sabia ao certo de que é que gostava, portanto fui explorando.

Pensou em despedir-se?

Não podia despedir-me, tinha duas filhas pequenas, portanto fui fazendo cursos, intuitivamente. Fiz uma pós-graduação em psicologia positiva no ISCSP com a Helena Marujo que foi um abrir de olhos. Percebi que havia mais mundo, que era possível viver de outra maneira e que era possível trabalhar para sermos mais felizes. Esta ideia de a felicidade também depender de nós foi muito revolucionária. E aos 30, depois do meu divórcio, comecei a fazer psicoterapia. Eu tinha imensas dores de cabeça porque estava uma panela de pressão. Mas não podia sair do banco nem faltar ao trabalho. Então fui fazer psicoterapia, que na altura também não se usava nada, e que foi a minha salvação. E fui pelas minhas filhas, a pensar ‘eu não lhes posso falhar’. E à medida que me fui sentindo melhor, também comecei a pensar no que é que queria fazer da minha vida. Porque quando a pessoa está muito triste, é como se estivesse às voltas na máquina de lavar, anda para lá no rolo, sabe lám o que quer da vida. Mas quando a tristeza começa a levantar, aí sim podemos raciocinar.

As dores da cabeça só terminaram quando eu saí do banco. Eu ia subindo de nível, tinha cada vez mais ‘sucesso’ mas sentia-me cada vez mais desligada. E pensava, vou largar esta estabilidade, o ordenado ao fim do mês, esta segurança? Mas escolhi a minha felicidade.

Quando é que percebeu que estava na altura de sair?

Comecei a estudar psicologia aos 34, e aos 40 saí do banco. Claro que tinha um fundo de maneio, mas ainda queria ter mais. E a minha filha mais velha, que ainda era miúda, diz-me ‘Mas tu vais ficar triste mais um ano por causa desse dinheiro?’ Lembro-me que saí para ir ao supermercado, já era noite, e cruzei-me com um amigo que me disse exatamente a mesma frase da Maria. Aí decidi ir-me emboa.

E foi.

E fui. Demorei sete anos a tomar a melhor decisão da minha vida. O meu marido e as minhas filhas apoiaram-me a 100%. As minhas filhas viram uma mãe doente, triste, vazia por dentro, e depois viram a recuperaçao. E isso é importante, crescermos com os nossos filhos, partilhar as nossas tristezas e transformações com eles. Mas desde essa altura, tenho sido intensamente feliz em cada segundo e nunca me arrependi. Achei que ia ser mais difícil, que ia estranhar imenso porque desde os 20 anos que trabalhava com imensa adrenalina, imensos prazos, imensa responsabilidade, e de repente tudo isso desaparece. Agora sou dona do meu tempo, aceito o que quero, vou falar onde me apetece. Saí de uma vida inteira de obrigações. Penso muito sobre a morte, e leio muito que as pessoas no fim da vida se arrependem de não terem dao valor ao que realmente importava para elas. E eu não queria ser uma dessas pessoas.

Como é que foi esse período pós-despedimento?

Foram talvez os 9 meses mais felizes de toda a minha vida. Lembro-me de passar novembro enrolada no sofá a ler ‘O grande livro da vida e da morte’ enquanto lá fora chovia e as miúdas estavam na escola. Foi uma dimensão de vida que eu não sabia que existia.

Até que aconteceu o acidente…

Uma noite ia de férias, a minha primeira semana de férias depois de ter saído do banco, para a Arrifana. Ia toda a família, o meu marido, as minhas filhas e a minha enteada. E de repente, a nossa vida mudou. Só ouço o meu marido dizer ‘este gajo vai-nos bater’ e bateu. De frente, em contramão e em excesso de velocidade. E a nossa vida mudou para sempre.

O que é que aconteceu ao certo?

Todos ficámos muito mal: a minha filha Maria veio de helicoptero para Lisboa. Mas estávamos todos conscientes e no imediato o mais urgente foi ligar aos bombeiros e às ambulância. O senhor do outro carro sobreviveu mas passou muito tempo internado, mas a pessoa que ia ao lado dele morreu logo, no local. Fomos todos para hospitais diferentes e ficámos 3 meses sem nos vermos. As meninas foram as 3 para Santa Maria, o meu marido foi para o Curry Cabral e eu para São José, conforme as lesões de cada um. Fiquei com os pés destruídos, um braço partido, uma série de outras lesões, mas o crescimento pós trauma era uma realidade.

Como é que se sobrevive a isso?

Lembro-me de tentar controlar-me para não pensar ‘e se a minha filha morre?’Mas que mãe é que numa cama de hospital não está preocupada com a filha? Claro que a minha família nos trazia notícias. A dada altura, quando a Maria estava pior, a família decidiu não me dar mais informação. Então uma das vezes em que ela foi operada de urgência sem me terem dito nada, eu piorei, e os médicos disseram à família para não me dar informações sobre a minha filha que eu ficava logo pior. Mas ninguém me dizia nada! Mas quando ficámos a melhorar, eu e a Maria falávamos muito ao telefone, porque nos hospitais não se dorme. Tinhamos conversas de horas de hospital para hospital. E foi claramente a bagagem de trás que me permitiu olhar para o futuro e sonhar para lá do presente, e focar-nos na bênção enorme de estarmos vivas. Mas senti que teria sido muito fácil afundar-nos no drama. Foi uma escolha consciente não o fazer.

Como é que o resto da família evoluiu?

A Maria perdeu um ano de faculdade, as outras ainda voltaram à escola. E teria sido muito fácil deprimirmos, mas optámos por não deixar que isos acontecesse. Falávamos muito sobre o que nos tinha acontecido, de forma espontânea, sem tabus. E sinto que fizemos uma espécie de terapia partilhada. Depois a coisa começou a esbater-se e a certa altura deixámos de falar sobre isos, naturalmente.

Que mudou depois disso?

A minha mãe tinha morrido num acidente, e claro que toda a família fez essa ligação. E eu fui pensando sempre que o meu destino seria diferente da minha mãe, que eu ainda tinha muito para fazer. Achei que havia muito aí para explorar, e foi aí que comecei a estudar psicologia transgeracional. A Maria estava a estudar psicologia e foi comigo a Paris fazer um curso sobre isso.

Como é que conhecer a história da minha família pode ajudar-me?

Às vezes é muito simples. Por exemplo, uma cliente chegou-me muito confusa porque tinha 40 anos, a vida toda estabilizada numa grande cidade, mas sentia que tinha de deixar tudo para ir para a América Latina. Ela não percebia porquê só sabia que tinha de fazer isto, o que era muito estranho. Acabámos por descobrir que o bisavô tinha emigrado para a Argentina, mas não havia telefones, os homens ficavam longe vidas inteiras e a mulher ficava sozinha com os filhos. Então ele morreu, a mulher tinha 40 anos, nunca conseguiram trazer o corpo, e ela nunca mais o viu. A minha cliente tinha precisamente 40 anos. Isto é aquilo a que chamamos ‘síndrome de aniversário’, quando se chega a uma data marcante. Quando trouxemos essa história para a dimensão consciente, a senhora serenou. Já não tinha aquela urgência de viajar para honrar a avó. E acabou por não ir, porque já não precisava. Ela precisava apenas de saber porque é que estava a ser chamada. Porque o inconsciente é atemporal e alocal, não tem tempo nem local, e cá ela pôde fazer um ritual de libertação da dor. A cura dá-se com a tomada de consciência.

E a sua morte, o que é que lhe ensinou?

Por exemplo, a nunca adiar o prazer. Fui educada no ‘controla-te’ mas porque é que eu não posso viver com prazer no imediato, se me apetecer? Esse é para mim o caminho mais libertador. E isto é o maior legado que eu deixo às minhas filhas: não lhes deixo o meu peso. Isso é importante – deixarmos que os nossos filhos nos vejam com as nossas fragilidades, com os nossos medos, com as nossas doenças. Elas viram uma mãe doente, triste, vazia por dentro. Mas também viram uma mãe que se questionava, que pocurava saídas, que lutava. As minhas transformações foram sempre feitas em família, sempre partilhadas. Vejo que as minhas filhas já aproveitam a vida quando eu não o fiz. E sabem que se um dia estiverem mal, podem pedir ajuda. Mas atenção, não desejo ter a crença de que só a dor nos ajuda a mudar. Não se aprende só com o sofrimento, e há quem não aprenda nada.

Também podemos estar bem e aprender?

Logicamente. Se me perguntar, preferia que a sua mãe não tivesse morrido? Claro. Preferia não ter tido o acidente? Claro. Preferia estar noutro patamar de desenvolvimento pessoal e não ter aprendido nada do que aprendi? Claro. Mas quando alguma coisa má nos acontece e nós não podemos controlá-la, podemos ao menos controlar a forma como me relaciono com aquilo que me aconteceu. Quando tivemos alta, eu e o Tomás foi muito romântico porque tivemos alta no mesmo dia. Ainda fui com uma máquina de vácuo presa ao pé, mas mandaram-me para casa. E no mesmo dia o Tomás pediu que o mandassem também para casa. Ficámos tão felizes, chorámos agarrados um ao outro, e nesse dia também voltei a ver as minhas filhas.

Como foi o embate com a realidade?

Muito duro. Ambos tinhamos de ter pessoas a tratar de nós no dia a dia, a ajudar-nos, a dar-nos banho, era uma realidade de dependência que uma pessoa de 40 anos não está à espera de enfrentar. E quando senti que estávamos a resvalar para a raiva e para a zanga, tive uma conversa com ele. Estamos todos vivos e portanto eu gostava que estivesses ao meu lado a levar isto da melhor maneira possível. Em vez de pensar ‘ai estou cheia de dores no pé e não consigo ir ao café sozinha’ pensar ‘que bom, demorei meia hora a chegar mas estou a tomar o meu café’. E estamos vivos. Mal ou bem. Não podiamos desfocar.

A morte tem sido outro dos seus, digamos assim, interesses…

Sim, a morte tem sido outra das minhas áreas de paixão, se calhar porque também já estive perto. Recebo muitas pessoas em final de vida. A morte é o grande tabu do nosso século e nós nunca falamos sobre isso. A minha mãe era enfermeira no IPO e acompanhava doentes terminais, e de certa forma é algo que fez parte da minha vida. Eu saía do liceu e ia ter com a minha mãe ao IPO e lembro-me de acompanhar essas pessoas que estavam em fim de vida. Cada um de nós devia preparar o momento da sua morte, fala dos seus medos.

Todos temos medo da morte?

Temos, e é natural. Mas é bom falar sobre isso. Antigamente morria-se muito de um dia para o outro, agora temos muitas vezes ocasião de preparar a nossa morte. Mas porque não fazê-lo enquanto estamos saudáveis? Mas as pessoas têm muitps tabus e preconceitos, dizem ‘não fales que atrai’. Eu tenho os meus medos, mas gosto de falar sobre isso.

Como é que se prepara?

Para já, deixando os nossos assuntos concluídos. Não deixar nada por dizer, por exemplo. Nunca é falado nas famílias, a morte, nunca se verbaliza que aquela pessoa tem dois meses de vida. Às vezes as prórpias pessoas querem falar sobre isso, querem despedir-se, mas nós não aguentamos. E quantas vezes não nos despedimos, porque ficamos bloqueados, porque é desconfortável, porque temos pavor, porque não sabemos o que dizer. Lembro-me que quando estive internada nos cuidados intensivos, sem conseguir falar porque estava entubada, numa noite em que me senti especialmente mal, tinhamos um quadro onde escrever coisas, pedi o quadro e escrevi ‘Esta noite vou morrer’ e mostrei ao meu pai e ao meu irmão, coitados. Porque eu tinha recados urgentes para dar enquanto podia. Depois escrevi ‘O Hugo (o meu ex marido) tem de saber’ por causa das minhas filhas, ‘Digam à Maria, à Kika e ao Tomás que os amo’ e depois ‘Eu não quero ficar sozinha esta noite’ mas fiquei.

Não morreu…

Não morri, e fiquei feliz por isso. Mas não gostava de ter morrido sem ninguém. Lembro-me muitas vezes dessa noite e penso que teria morrido sozinha tal como muita gente morre sozinha, quando a presença humana, de amigos, de família, é fundamental.

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