Uma das partes mais bonitas da profissão de jornalista é conhecer pessoas interessantes, inteligentes e com muito para contar. Tenho tido o privilégio de falar com muitas pessoas assim, e saio sempre das entrevistas feliz mas com uma nuvem sobre a cabeça: será que vou conseguir partilhar com as nossas leitoras tudo aquilo que acabei de experienciar? Espero que sim, faço figas e tento passar tudo isso para estas páginas. Carmo Afonso recebeu-nos em casa, no centro de Lisboa, luminosa, com janelas enormes que deixam o sol entrar, uma casa que é o seu reflexo. A disposição do sofá e das cadeiras em U convida à conversa. Do outro lado, o gira-discos e uma pilha de vinis – com Zeca Afonso e António Variações no topo – destacam-se.
Há muito que queríamos entrevistar Carmo Afonso, quem é esta mulher que nos faz ver as questões de outro prisma e nos põe a pensar? Sobre ela escreveu o genial Miguel Esteves Cardoso, numa crónica do Público, jornal em que ambos escrevem: “Quando leio uma crónica da Carmo Afonso fico cheio de ideias. A inteligência dela põe-me sempre a pensar, mas faz outra coisa muito mais rara: dá-me vontade de escrever.”
Conte-nos um pouco
sobre si, onde nasceu,
como foi a infância…
Nasci na Serra do Caldeirão, no Algarve, em 1973. Passei a minha infância na serra, depois aos 9 anos fui para um colégio interno religioso, até ao 9.º ano, e a adolescência foi o meu grito de liberdade.
É filha única?
Não, tinha uma irmã, agora sou filha única.
Como é que a serra e o colégio interno religioso moldaram a sua personalidade?
Foi uma adaptação difícil ao colégio. Agora consigo reconhecer as coisas boas que o colégio trouxe à minha vida, mas tinha muitas saudades de casa e era um ambiente muito diferente, de disciplina e de estudo, no qual aprendi uma série de coisas que não teria aprendido se não tivesse passado por lá, mas foi uma experiência muito dura.
A sua família é religiosa?
É religiosa no sentido em que são religiosas as famílias tradicionais portuguesas. Eu sou de uma família tradicional portuguesa. Mas a marca da religião não estava no meu dia a dia, da mesma maneira que passou a estar num colégio religioso.
E quando saiu, como foi?
Foi o grito do Ipiranga. (risos) Tive uma adolescência bastante conturbada mas eu gostei, os meus pais é que não gostaram muito. (risos)
E que sonhos tinha a Carmo em pequena?
Sonhei com a vida que tenho.
Em ser advogada?
Sim, e ter uma família, ser independente… Aquela expressão que às vezes se diz ‘cuidado com aquilo que desejas’ é uma grande verdade.
Foi para advocacia por influência do seu pai?
Não, de todo, os meus pais deram-me uma educação muito feminista, sempre fizeram questão de me dizer que seria eu que teria de tomar conta da minha família. Não tive nada a educação da mulher que acha que alguém vai resolver a sua vida. Foi uma educação para o trabalho, para a independência.
Que tipo de advocacia exerce?
Aquilo a que eu chamo de pequena prática, porque não estou integrada numa grande sociedade em que os advogados se especializam numa coisa e só fazem aquilo. Tem vantagens, mas na pequena prática tem-se uma visão mais generalista, é muito mais interessante porque tem de se continuar sempre a estudar.
Veio estudar para Lisboa?
Sim, quando tinha 17 anos.
E identificou-se logo com a cidade?
Gostei muito da vida no campo e da ruralidade, mas gosto muito da vida na cidade, da cultura, dos espetáculos. Gosto disto de estar em casa sozinha e estar muita gente na rua a fazer barulho.
Como foi o seu despertar para a política?
Para gostar de política, não sou política. Foi uma coisa muito natural, desde sempre. Vou dizer-lhe uma coisa que não é nada pacífica e que irrita as pessoas de direita e de esquerda. As pessoas que se sentem mais ligadas ao cristianismo odeiam que se diga que as ideias de esquerda são parecidas com o cristianismo, e as pessoas ligadas à esquerda também odeiam que se diga isso, que o cristianismo é parecido com as suas ideias, mas é o que eu acho.
No colégio, estudámos o Velho e o Novo Testamento, e sobretudo este último é altamente político. Apesar da minha relação com a religião ter sido bastante complicada, continuo a achar que a mensagem que é atribuída, na Bíblia, a Jesus Cristo, é inultrapassável, muito boa. É uma mensagem de tolerância, de compreensão, de partilha, de estar com os que têm menos e nunca com os que têm mais, e os que têm mais, para estarem junto de Cristo, têm de se despojar.
A religião contribuiupara o seu despertar político?
Eu associo ao despertar político porque com 11-12 anos tinha muito interesse em perceber o que se passava politicamente. E depois tive uma pessoa que também foi muito importante para isso, e continua a ser, que é o meu pai. O meu pai não tem nada a ver comigo politicamente, é de direita, mas gosta muito de uma boa conversa. Nós tivemos discussões a vida inteira, terríveis, em que quase deixávamos de nos falar. O meu pai dizia, “dou-te a minha palavra de honra que nunca mais na vida nós voltamos a falar de política”. E era até a próxima vez. (risos)
E hoje, essa paixão continua?
Sim, política é uma paixão. A política é reconhecer que tem de haver pessoas e organizações que tomam conta da vida comum, que tem de haver alguma vigilância de todos nós, no sentido positivo, de cuidar, para que as coisas sejam bem feitas no interesse de todos.
“Há tanta depressão e angústia individual! Muito disto resolver-se-ia se as pessoas não estivessem tão sozinhas, se se vivesse mais em comunidade.”
E quando é que se descobriu de esquerda?
Sou de esquerda desde sempre.
Por oposição ao seu pai?
Não, até porque o meu pai ensinou-me uma coisa muito importante, que possibilita relacionar-me com pessoas de direita e gostar delas. Ensinou-me que é possível ser de direita e ter bons valores, ter interesse pelo outro, pelo bem comum, e achar que deve haver distribuição de riqueza. Isso existia na direita também, mas agora as pessoas estão entrincheiradas, sempre prontas a falar sobre o que as separa e nunca sobre linhas de entendimento.
O que a tira do sério na política?
O aproveitamento das fragilidades das pessoas. É uma coisa que me perturba. As pessoas são feitas de fragilidades gigantes, emocionais, financeiras, intelectuais… E acho que quem se aproveita dessas fragilidades politicamente para fazer um caminho devia ser banido da vida política, porque é a coisa mais grave que podem fazer às pessoas. É fazê-las cair numa armadilha.
Não melhoram a vida das pessoas…
Não, porque é sempre o caminho de mais cisão, mais ódio. ‘Tens 40 anos, sonhaste que estarias a fazer um determinado caminho e não estás, porquê?’ E depois vem a conversa dos imigrantes, dos ciganos que vivem sem trabalhar e recebem subsídios… É tudo um bricabraque bastante completo, porque dá alento, dá conforto, dá desculpas para as pessoas não terem alcançado tudo aquilo que ambicionavam e dá desculpas para as frustrações que as pessoas sentem.
Ficou surpreendida com o resultado da extrema direita nestas eleições [legislativas 2024]?
Nem por isso, não é preciso ser visionária, basta olhar para o que se tem passado lá fora: ganharam em Itália, em França poderão ganhar, no Brasil perderam mas não foi por muito, o Trump pode vir a ganhar…
Mesmo que mintam e se prove que mentiram…
O Polígrafo não adianta muito. No outro dia, reparei que tinha sido atingido o número 100 mentiras do Ventura em pouco tempo. Teve algum impacto? Não, porque não é um movimento racional, é um chamamento, um encaixe emocional, por isso é o que mais me incomoda na política. Digo-lhe mais, ciclicamente, a humanidade entra num movimento autodestrutivo que só pára quando se esmaga na parede. Se olharmos para a História, vemos que isso aconteceu algumas vezes, em que as pessoas, dia a dia, tomam a pior decisão possível para si mesmas e para o grupo. O Trump disse que se não ganhar as eleições vai haver um banho de sangue e as pessoas continuam a achar que é bom votar nele. Na Europa, isto está a acontecer, na Suécia, França, Itália, Espanha, Noruega, Holanda, Portugal. As pessoas estão completamente iludidas a odiar os outros, o socialismo…
Ligam comunismo e socialismo a empobrecimento,
a ditaduras…
Essa conotação está errada, qual é o papel do Partido Comunista Português, hoje, na sociedade? É lutar por coisas boas, pelos direitos dos trabalhadores, por melhores salários e condições de vida. Como é que um país pobre pode prescindir dessa luta? Só trazem coisas boas à democracia. Digo isto mas não sou comunista, e não o sou porque não sou tão boa assim. Palavra de honra, eu acho que os comunistas são pessoas muito virtuosas, muito íntegras, inteiras. E eu estou metida no mercado, não me sinto com essa pureza. Luto por políticas de esquerda, estou disposta a fazer o melhor possível para que haja uma mínima distribuição da riqueza, para que as coisas se nivelem, e acho que o Estado deve ter esse papel. Esta é a minha visão política, isto é ser radical?
Como viu o Algarve votar tanto no Chega?
Houve dois momentos que foram fortes para mim. Um foi quando um estudo revelou que 30% dos jovens até aos 25 anos eram simpatizantes ou votariam Chega. Surpreendeu-me imenso, porque achava que os miúdos tinham um detector natural incorporado de bullshit [tretas].
São mais os rapazes que as raparigas…
Nessa parte, tenho um orgulho tremendo, as mulheres sempre vão tendo mais juízo. Estes jovens têm problemas muito sérios. Estamos há demasiados anos a viver numa cultura individualista. Perdeu-se o movimento associativo, aquela coisa que as pessoas têm de fazer parte de uma coisa, em vez de estarem sempre no seu projeto pessoal.
E sim, fiquei muito triste com o Algarve. A maior parte dos algarvios trabalhava no turismo e fazia aquilo que é agora feito pelos imigrantes. Atenção, que os algarvios não estão disponíveis para trabalhar pelas remunerações que os imigrantes recebem e houve muitas pessoas que ficaram excluídas.
“Adoro o Twitter, o sentido de humor, mas pode ser um esgoto porque a sociedade está um esgoto. Há muita gente que está sempre pronta para insultar.”
As suas crónicas são sempre surpreendentes e muito elogiadas, até o Miguel Esteves Cardoso escreveu uma com o título ‘Viva a Carmo Afonso’…
Essa crónica do MEC foi tão extasiante para mim que nesse dia nem consegui trabalhar. (risos) O MEC deu-me educação e sou mesmo grata por isso, com 12-13 anos já lia os livros dele. Portanto, ele fazer-me um elogio foi brutalmente extasiante. É um homem tão culto e tão erudito, tão completo, lá está, um homem de direita que admiro muito, porque eu sei que pode haver bondade, integridade e o interesse pelo outro na direita, o MEC e o Pacheco Pereira são disso exemplo.
A Carmo tem três filhos?
Sim, e sou avó de uma neta com 9 anos.
Foi mãe superjovem, e avó também.
Fui mãe com 18 anos e a minha filha aos 24. É maravilhoso a vida ter-me dado a oportunidade de ser avó com tanta vida e energia. A vida deu-me uma segunda oportunidade de fazer melhor.
O tempo passou a correr com os seus filhos?
Sim, foi tudo tão rápido que nem tive tempo de refletir na oportunidade que é educar uma criança, eu passava o meu tempo a tentar organizar-me. Tinha o meu escritório, os filhos, muito ativa a tentar resolver tudo, não tive o tempo ou a inteligência de cheirar as rosas e com a Helena é só cheirar rosas. (risos)
Que idade têm?
Tenho uma com 32, outra com 23, que está em Londres a estudar, e o mais novo, com 20, a estudar na Holanda.
E algum deles está na sua área?
A mais velha é de Economia, a do meio, das Artes e o mais novo está em Finanças Públicas e Gestão.
Fica assim com mais tempo para escrever.
Agora escrevo no Público, mas comecei a escrever crónicas para o Expresso porque um diretor me enviou uma mensagem no Twitter a desafiar para isso. Foi algo completamente inesperado, mas a vida é muito perfeita. E digo isto porque isso apareceu na minha vida quando os meus filhos começaram a sair de casa e a ir em direção ao caminho deles. Apesar de tudo sou mãe, ainda por cima ‘carangueja’, e comecei a sentir um pouco… ‘então, vão-se todos embora?!’. E aí a vida deu-me outros preenchimentos.
E como é que eles veem a mãe a ter de lidar com tantos comentários horríveis no Twitter?O
u fiz um trabalho de educação maravilhoso ou eles, para lá de quaisquer educações que tivessem tido, são maravilhosos. Para já, tenho orgulho em dizer que são os 3 de esquerda, o que me dá uma grande alegria. Teria respeito, se não fosse o caso, mas todos têm uma visão muito de causas, vão às manifestações, são pessoas altamente solidárias. Os meus filhos mais novos são judeus e são completamente pró-Palestina. Fazem o Hannukah, o Yom Kippur, tiveram uma educação nos rituais, e continuam a fazer as cerimónias com os avós e isso não muda nada. Relativamente à minha exposição pública, recordo-me de uma coisa que a minha Sara, a do meio, me disse, “oh mãe isso é tão bom sinal”. (risos)
E os seus pais?
Fico contente por não terem Internet. Compram o jornal físico, que não tem comentários, o que é maravilhoso. Lá está, a vida a ser perfeita, porque eles não estão preparados para serem insultados ou para me verem ser insultada.
Além da advocacia e da crónica política, também escreveu o argumento do filme ‘Linhas Tortas’. É algo que pondera voltar a fazer?G
ostava muito, mas não estou a conseguir porque a escrita exige muito de nós. A escrita é o tempo que pensamos e o que escrevemos. Em cada cena, cada crónica, tenho uma coisa pensada para escrever e ela ganha outro caminho, às tantas tenho de ler o que escrevi. Temos de dar-lhe tempo, e não é fácil tendo eu uma vida tão Jack Bauer. Mas quero voltar, ainda tenho muito para viver.
A Carmo não teve problemas em dizer a idade…
Não, nada, nunca escondo a minha idade. Sabe que eu acho que temos de lutar pelo nosso direito à idade, porque nos põem rótulos que são inaceitáveis. Vejo que há homens que insultam as mulheres pela idade, porque acham que é uma maneira de as magoar, mas nós temos de lutar contra isso, os anos que temos é aquilo que nós vivemos.
Que conselho daria à Carmo dos 20 anos?
Não sei, mas não quereria voltar atrás. Uma das coisas mais importantes da vida chama-se memória. Se eu voltasse atrás, se tivesse de, porque não quero, gostaria de não perder a memória destes 30 anos.
Faria tudo igual?
Não, claro que não. As pessoas dizem essas frases em embalos de otimismo. Não tenho vontade de mudar nada na minha vida. Aceito como isto está e como aqui cheguei. Claro que me arrependo de muitas coisas que fiz na vida. Claro que há outras que gostava de ter mudado. Claro que há coisas que devia ter feito melhor, ter estado mais, ter dado mais, ter olhado mais. Devemos tentar ser as melhores pessoas possíveis e às vezes não conseguimos.
Carmo Afonso em 9 perguntas
Qual é o seu livro de cabeceira?
Tenho dois: ‘O Livro do Desassossego’ e ‘As Aulas e Conversas’ do Wittgenstein.
Que música a faz logo querer dançar?
Sabe que eu sou da música electrónica, adoro, o que não resistoé a 2 ou 3 boas horas de dança.
A cidade em que gostava de viver…
Nova Iorque. Gosto daquilo que o Sinatra cantava que é estar numa cidade que nunca dorme.
Que personalidade gostaria de convidar para jantar?
Realizei esse meu sonho, fiz essa loucura. Havia um jornalista e escritor que eu adorava, já morreu, o Robert Fisk, consegui o contacto dele, e como ia a Beirute convidei-o para jantar. Também adoraria jantar com o MEC.
O político que gostava de conhecer, ou ter conhecido, pessoalmente.
Álvaro Cunhal.
A mulher política que mais admira.
Gostava muito da Odete Santos, e tenho também uma grande admiração pela Mariana Mortágua e Alexandra Leitão. São maravilhosas.
Não consegue viver sem…
Amor, não consigo mesmo viver sem amor.Tenho os meus pais vivos, e os meus pais são muito presentes, os meus filhos, a minha neta, os meus amigos, e pertencer a essa rede dá-me muito chão.
A palavra ou expressão favorita.
Igualdade. Sabe porque é que eu chamei à minha crónica no Público ‘Sementes de Alfarroba’? Porque as sementes de alfarroba de todas as alfarrobas do mundo têm o mesmo peso.
O filme ou livro que aconselharia a pessoasde direita e de esquerda.
Para as pessoas de direita, aconselho o ‘Espírito de 45’, de Ken Loach. E também às pessoas de esquerda que estão a sentir-se um bocadinho desligadas. Está no FILMIN. Depois há um livro muito inteligente, ‘Sobre humanos e outros animais’, que eu percebi logo que era escrito por uma pessoa de direita, John Gray, que também é bom ler.