Patrícia Santos Pedrosa, arquiteta, investigadora, professora na UBI. (Foto: Ricardo Santos)

Arquiteta, investigadora, professora na Universidade da Beira Interior (UBI), mãe e feminista, é assim que Patrícia se identifica, não por vaidade mas para mostrar as diferentes dimensões da sua vida e das suas lutas, sendo uma delas dar maior visibilidade ao trabalho das mulheres arquitetas que a antecederam e das suas contemporâneas, tendo para isso cofundado a associação Mulheres na Arquitectura. E como as conversas são como as cerejas, acabámos também por falar na paixão pela arquitetura, em cidades mais humanizadas e pensadas nas mulheres… para ler tintim por tintim.

Conta-nos um pouco da tua vida, de onde vens…
Nasci em Lisboa, em 1971, e vivi a minha infância e adolescência entre Oeiras, a casa dos meus pais, e a Picheleira, um bairro operário, casa dos meus avós.

Como surgiu a vontade de seguir Arquitetura?
Apesar da vontade de ir para Artes no secundário, houve alguma pressão familiar contrária e fui para Ciências. À primeira escapatória encostei-me novamente às Artes e entro em Arquitetura em 1990.

E foi aquilo de que estavas à espera?
Aconteceram muitas coisas com a entrada na faculdade. Por um lado, uma consciência de classe, não era filha de médicos, arquitetos, advogados, era a primeira geração da minha família a ir para a universidade. Tive ainda, talvez pelo grupo em que me movia e por alguns professores que tive, a noção da importância social da Arquitetura. Aquilo que aprendemos e aquilo em que nos transformamos não é uma coisa individual, é um modo de melhor combatermos as injustiças. Por outro lado, tive uma percepção da injustiça que já advinha dos papéis de género. Costumo dizer, meio a brincar, que saí do armário do feminismo muito tarde.

Havia um ambiente machista na faculdade?
Sim, mas no início ainda sem ter consciência plena de por que me deixava tão desconfortável. Desde professores a dizerem anedotas sexuais aos olhares lascivos a algumas estudantes… dás-te conta disto e não sabes como processar. Hoje continua a haver muito sexismo nas universidades, é fundamental agir e ensinar aos professores o que não se deve fazer. Há ainda muitos colegas homens que acham que são apenas piadas. Não são.

Mulheres e homens não são tratados de igual forma nesta profissão, não temos as mesmas oportunidades.”

Concluíste o curso, e depois como foi?
Quando saí da faculdade, percebi duas coisas: primeiro, apesar de o curso já ser muito igualitário em termos de número de alunos e alunas, senti que nos grupos de trabalho, para ser ouvida, precisava de ser muito argumentativa, o que é bastante cansativo; e saio também com a percepção de uma enorme ignorância, que havia áreas em que o curso era muito deficitário, e isso motivou-me para continuar a estudar. Defendi o último trabalho em janeiro de 97 e em setembro seguinte iniciei o mestrado em História da Arte na Universidade Nova, onde aprendi imenso e ganhei rigor metodológico. Depois, em 2004, vou fazer o Doutoramento em Barcelona, estou uns anos por lá e volto para Portugal.

Nessa altura já sabias que querias ir para o ensino?
Já era muito claro que investigação e ensino eram áreas que me interessavam. Tinha tido, anteriormente, algumas experiências profissionais, dei aulas no secundário, tive uma pequena experiência universitária e trabalho de ateliê. Rapidamente me apercebi de que no ateliê não me sentia feliz, as horas desreguladas, o trabalho ao fim de semana… Além disso, gosto muito de fazer investigação e a dimensão do ensino é muito importante porque é aí que me testo, que aquilo que aprendo é trabalhado, tricotado. Entretanto, quando volto, vou dar aulas para uma universidade privada em Lisboa. Tenho ali uns anos intensos, nasce a minha filha, defendo a tese de mestrado e a de doutoramento. Esta é sobre habitação em Portugal dos anos 60, e aí já vi a importância do papel da mulher para a arquitetura.

É aí que o ativismo neste tema das mulheres
na arquitetura te ‘chama’?
Começou pela investigação. Em 2010, proponho um artigo sobre arquitetas em Portugal num congresso, ao qual, curiosamente, não vou porque a minha filha adoece. Isto acaba por ser um ponto de viragem. Tinha concluído o doutoramento e lembro-me que andei uma semana com insónias para perceber se queria ser – e isto é uma expressão de um amigo – “a gaja das gajas”, porque sabia que ia ser estigmatizante. Não sabia se ia ter coragem para redirigir energia para uma nova linha de trabalho. E, sim, decidi que seria ‘a gaja das gajas’. (risos) E confirmou-se a estigmatização.

É aí que surge a associação Mulheres na Arquitectura (MA)?
A MA toma forma oficialmente depois, em 2017, para responder à consciência que 9 mulheres tinham da profissão, que não tratava de igual modo mulheres e homens, tal como o facto de as cidades não estarem pensadas e construídas tendo em conta as necessidades, aspirações e direitos de mulheres, raparigas e meninas.

A arquitetura tornou-se um meio profissional pouco saudável, precário, de baixos salários e extenuante.”

É estranho que se conheçam vários arquitetos, mas arquitetas não. Dos 27 mil profissionais em Portugal, quase 45% são mulheres. Onde estão elas?
É uma das nossas questões. As arquitetas sofrem vários tipos de ‘invisibilizações’. Em 2017, iniciei um projeto de investigação, ‘W@ARCH.PT – Arquitetas Portuguesas: construção da visibilidade’. Achava que ia chegar ao fim e teria uma história das mulheres arquitetas, mas percebi logo que seria um caminho longo e difícil. Os arquivos institucionais não as valorizam ou não as têm sequer identificadas, e as famílias não têm noção da sua importância. Muitos familiares disseram-me que elas não tinham feito nada de especial. Trabalharam uma vida inteira, não pode ser nada, isto foi o primeiro choque. Por outro lado, muita da História da Arquitetura foi feita por homens e tem a ver com os círculos de proximidade e de reconhecimento, e este boys’ club obviamente desvalorizou as competências das suas pares.

Porquê?
Porque a profissão era e é machista e elitista. No novo formato, a arquitetura tornou-se um meio profissional muito pouco saudável, precário, de baixos salários, extenuante, e há esta ideia, que as faculdades também passam, que o trabalho bom é o trabalho sofrido, que resulta de muitas olheiras e falta de sono… É um modelo de construção de carne para canhão, totalmente oposto ao que um arquiteto e arquiteta devem ser: têm de ter mundo, cultura, viajar, ver cinema, exposições. Se só trabalhamos, onde está a vida que nos torna mais capazes de perceber a vida para a qual projetamos? É incompatível também com a vida familiar, e com o estereótipo da mulher cuidadora, quando querem constituir família as arquitetas deixam os ateliês, procuram trabalhos mais estáveis, vão para as câmaras, o ensino, a investigação. Vertentes da profissão consideradas menores. Não têm visibilidade.

Há poucas mulheres a abrir ateliês sozinhas?
Já são muitas as mulheres que têm ateliês. Sozinhas ou com outras mulheres. Entre outras, em Portugal temos, por exemplo, a Inês Lobo, a Paula Santos, a Helena Botelho, a Luísa Bebiano, o Colectivo Frame, Artéria, Blaanc ou Can Ran. Mas uma coisa é existirem e fazerem um bom trabalho, outra é serem conhecidas. O panorama mudou, mas quando pergunto aos alunos de primeiro ano para me darem nomes de arquitetos portugueses, referem nomes como Siza Vieira, Souto Moura… se peço internacionais, mencionam Rem Koolhaas, Oscar Niemeyer… de arquitetas internacionais falam de Zaha Hadid e, como tenho alunos e alunas do Brasil, referem Lina Bo Bardi… Arquitetas portuguesas? Zero.

Impressionante…
Há pouco, perguntavas onde estão as mulheres arquitetas. Estamos onde conseguimos. Tudo é muito duro. Ainda tens escolas sem uma professora nas aulas de projeto, e onde as unidades curriculares não têm mulheres na bibliografia ou nas obras referidas. Temos 50-60% de mulheres nas salas de aula mas depois elas não se veem ao espelho. O que é um erro. Sinto-me profundamente arquiteta com aquilo que sou, mas jamais ganharei um Pritzker. O modelo que se ensina na escola é o do arquiteto genial, autoral, mas o nosso trabalho é, e sempre foi, um trabalho de equipa. Mesmo quando alguém tem um ateliê, e assume as responsabilidades em seu nome, nunca pode omitir ou achar de menos as colaborações das equipas com quem se trabalha.

Dá-se demasiado valor ao Prémio Pritzker?
Nas escolas, sim, mas a arquitetura é um trabalho de equipa, com as populações para as quais se projeta. Este narcisismo profissional só tem trazido irrelevância à profissão: irrelevância política, social e cultural.
Valorizou-se, até muito tarde, o arquiteto-artista. Depois, com o 25 de Abril e a imensa falta de habitação, entrou a dimensão do papel social do arquiteto. Infelizmente, nos anos 1980, com a entrada na Comunidade Europeia, achámos que éramos todos ricos e o que passou a interessar foram as modas, as práticas de arquitetura para as pessoas e para o bem comum eclipsaram-se.

Quando os meus alunos descobrem a qualidade da obra de arquitetas ficam chocados por elas serem desconhecidas.

Voltando à falta de visibilidade das mulheres arquitetas, como contar a sua história?
Diversificando e ampliando a história. Por exemplo, toda a história dos arquitetos e arquitetas nas câmaras municipais, ou em gabinetes de apoio técnico local, está por fazer e vai-se perceber que muitas mulheres estão ou estiveram aí. Para mim, como arquiteta, investigadora, professora e feminista, é importante que a história não seja só a dos supostos vencedores. Onde estão as projetistas nos livros de História da Arquitetura nacional? Não estão!

Não?…
Começam a aparecer nos livros e revistas contemporâneas, mas nos livros gerais de História da Arquitetura nacional não estão. Por exemplo, as duas primeiras arquitetas formadas em Portugal, M.ª José Estanco, em 1942, e M.ª José Marques da Silva, em 1943. A primeira apaixona-se pela arquitetura quando visita a irmã no Brasil e fica seduzida pela ‘magia de ver surgir uma cidade do mato’. Quando se forma, quer trabalhar para a Câmara mas é-lhe vedado o acesso porque não tem a carta militar. Dedica-se ao ensino. Já Marques da Silva (filha de um conhecido arquiteto) pertence às elites do Porto e teve um ateliê com o marido, David Moreira da Silva. Sabe-se que fizeram projetos e obras juntos, mas até recentemente a autoria das obras de ambos chegou a ser dada só ao marido. Temos aqui exemplos de exclusão das mulheres na profissão: o direito à prática e à autoria.

Podes apontar-nos algumas obras de arquitetas,
para as conhecermos melhor?
Detesto essa pergunta, porque vou injustamente esquecer-me de nomes fundamentais. Vou antes referir a coleção que fizemos para o Público sobre arquitetas e que vai sair no outono: cinco volumes temáticos e cinco bimonográficos. Ficaram imensas de fora. A Lia Antunes, por exemplo, está a fazer um doutoramento sobre o SAAL, a estudar as mulheres arquitetas, as técnicas e as moradoras no SAAL e está a ser maravilhoso o que tem encontrado.

O que é o SAAL?
Serviço de Apoio Ambulatório Local, é o programa estatal de construção de habitações para populações mais desfavorecidas, que decorre durante o PREC (Período Revolucionário em Curso).

Achas que há uma arquitetura de género?
Não, o que tu tens é a socialização, nós somos socializadas para o cuidado. Somos, ainda, quem passa mais tempo a cuidar da casa, dos filhos. Por um lado, se fores desenhar uma cozinha, como passas mais horas naquele espaço consegues perceber o que te irrita e o que mais faz sentido, não é por teres ovários. Por outro lado, na dimensão urbana, muitas cidades são ainda herdeiras de modelos monofuncionais, que dão mais importância à esfera do trabalho e à mobilidade associada à dimensão produtiva. Onde está toda a esfera do tecido social?

Onde estão também as mulheres…
Sim, é onde está a esfera dos cuidados, dos familiares, que pode ser também dos cuidados enquanto prática profissional: enfermagem, medicina, centros de dia, de apoio à infância, escolas, professoras, auxiliares. Levamos os filhos à escola, vamos buscar os medicamentos da avó à farmácia… além disso, há outras dimensões de cuidado na esfera produtiva que são garantidas por mulheres: dos trabalhos precários, por turnos. Como é que pensamos nestas cidades, onde o transporte público é maioritariamente usado por mulheres, jovens e crianças? Se trabalho num shopping e saio depois das 00h, como volto para casa? Também está estudado que os homens tendem a ter percursos mais bidirecionais (casa-trabalho-casa) enquanto o das mulheres é mais fragmentado, mais complexo. Onde está a cidade a colocar a esfera dos cuidados no centro? Não está.

Há cidades que sejam um bom exemplo?
Viena tem feito um esforço a partir do topo das políticas municipais para alterar as coisas e ainda hoje dizem que há muito por fazer. Tens a Catalunha também com alguns bons projetos.

Como seria Lisboa mais pensada para as mulheres?
Seria mais colaborativa, seguramente menos turística, menos especulativa, porque se pensaria na importância da dimensão do bairro, enquanto núcleo social, onde vive a diversidade de origens e geracional, onde haveria redes de proximidade e de solidariedade. Com muitos espaços verdes e a pensar no aquecimento global e menos carros que destroem a qualidade de vida das nossas cidades.

Investir nos transportes
públicos torna as cidades
mais humanizadas?
São uma peça fundamental para termos uma cidade democrática, de acesso tendencialmente gratuito, bem articulado e com horários fiáveis. Mas existem soluções pequenas que podem ir ajudando. Creio que foi Valência que adotou uma medida muito simples e económica: a partir da 1h da manhã, os autocarros passam a fazer paragens a pedido, para que as mulheres possam ficar mais perto de casa. Não é uma questão de comodismo, é para haver menos exposição à possibilidade de perigo e violência. A solução não passa por dizer às mulheres para não saírem à noite, as mulheres têm direito ao lazer, à vida social, cultural e ao emprego, porque muitas vezes voltamos para casa tarde e não é por causa do lazer, nem da cultura, pode ser por estudar ou trabalhar.

Como é que os teus alunos e alunas na UBI reagem quando estudam o trabalho de arquitetas ‘desconhecidas’?
É sempre muito engraçado quando eles e elas vêm ter comigo para falarem sobre a arquiteta que escolheram para estudar, e dizem, ‘esta arquiteta era do caraças’.
Ainda este último ano, um grupo estudou a arquiteta italiana Gae Aulenti e só diziam ‘que trabalho excecional, como é possível nunca termos ouvido falar dela?!’. Como se vê, há muito trabalho a fazer para contrariar as invisibilizações das mulheres.

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