João Jaime Pires, Professor e Diretor da Escola Secundária de Camões, antigo Liceu Camões. (Fotos: Luís Coelho)

A entrevista estava marcada para as 8h30 da manhã de uma segunda-feira. O diretor da Escola Secundária Camões apressou o passo mal me viu. Estava à espera de uma conversa curta mas digo-lhe que a entrevista é um perfil dele, para as pessoas conhecerem melhor o homem à frente do (antigo liceu) Camões, até porque não há quem não elogie o seu dinamismo e perseverança quando se fala nesta escola e no Ensino Público. A surpresa passa a embaraço e desconforto, estava preparado para falar das suas lutas, mas descontrai quando faço uma confissão: foi ele o professor que mais me marcou na adolescência. A disciplina? Matemática do 7.º ano. Lembro-me tão bem do professor João Jaime entrar sorridente na sala e nunca se irritar, nunca perder a paciência ou levantar a voz… mesmo quando nos portávamos menos bem. Era o professor mais cool, para isso pesava o facto de ser muito jovem, descontraído e ator amador na Sociedade Euterpe Alhandrense.

Depois daquele ano, perdi-lhe o rasto até ao dia em que, em plena pandemia, apareceu na RTP3. Impressionante como a memória funciona, bastou ouvir a voz (não estava a olhar para a televisão) para o meu cérebro voar até aos anos 80 e à sala de aula de Matemática na Escola Secundária Reynaldo dos Santos.
Desde 2020 que o encontro várias vezes nas páginas dos jornais e o seu nome vem sempre à baila em conversas com pessoas da área do Ensino, sempre como uma referência, como pedagogo, acérrimo defensor do ensino público, do acesso à cultura nas escolas, e um lutador incansável pela recuperação do edifício centenário do Camões, que estava num avançado grau de degradação. Ao lado dele estiveram muitos pais de alunos que, também por amor à camisola, meteram mãos à obra para pintar paredes e reparar telas.
Em tempos apertados da troika e com a escola a precisar de obras urgentes, ele e a sua equipa organizam concertos, peças de teatro e de dança e pedem a figuras públicas que passaram pelos bancos daquela escola o seu apoio, tudo com a intenção de angariar dinheiro para fazer algumas obras. Só em 2019 é que se deu início às (tão desejadas) obras de recuperação da escola.
Para João Jaime Pires, a sua conclusão é também o fim de um ciclo, pois espera que no final de 2024 esteja tudo pronto para poder inaugurar e passar o testemunho. Um guerreiro que merece descansar.

Conte-nos um pouco das suas origens.
Nasci em novembro de 1955, em Alhandra, terra da minha mãe, o meu pai era de Trás os Montes mas veio para a Marinha na Quinta das Torres. Vivi a minha infância e adolescência na terra dos ‘Esteiros’ de Soeiro Pereira Gomes. Curiosamente, a primeira vez que estive no Camões foi aos 10 anos, para fazer o exame da 4.ª classe. Lembro-me que trazia um casaco de veludo com uma caravela em filigrana bordada no bolso e um ‘papillon’, tínhamos de vir apresentadinhos (risos) para o exame.

E veio estudar para esta escola?
Não, passei nos dois exames, mas como era filho único a minha mãe achou que vir para Lisboa era perigoso, então fui para a escola industrial em Vila Franca de Xira, onde estudei até ao antigo 5.º ano. Tive a sorte de ficar numa turma piloto que tinha aulas de matemática moderna e ganhei o gosto. O resto não achava graça, tínhamos oficinas de 22h semanais, com fato-macaco a sério, para sairmos dali como montadores eletricistas ou serralheiros. Quando acabei, por sorte abriu uma secção preparatória (para o acesso ao ensino superior) em Alverca. Depois disso podia-se seguir para o que é agora o ISEL.

Que idade tinha?
Vim para o ISEL em Lisboa com 18 anos. Em Alhandra fiz tudo o que podia ter feito, joguei futebol, fui autarca e estive na fundação do grupo de teatro ‘Os Esteiros’, que me marcou muito. Era um jovem tímido e o teatro foi uma experiência marcante. A dinâmica cultural que tento criar aqui na escola, e talvez seja essa a diferença em relação às outras escolas, vem dessa minha vivência na juventude.

Foi dar aulas quando terminou o curso no ISEL?
Não, fui trabalhar para a Tudor, na Castanheira do Ribatejo. A empresa não era das piores, tinha um salário razoável, mas ao fim de seis meses de lá estarmos, todos já tínhamos chumbo na urina. Era uma zona muito poluída, e eu nem estava nas baterias. Foi uma experiência interessante mas não me arrebatou e também não renovaram o contrato.

Perdeu a Tudor, ganhou o ensino…
Eu saio da Tudor em março, era muito jovem e tinha muita vontade de intervir na comunidade, por isso, como havia muita procura de professores de matemática, decidi concorrer para dar aulas. Senti que era uma profissão que iria gostar até porque tive um primeiro contato com o mundo da educação em 1974. O meu serviço cívico foi a alfabetização no Bairro dos Avieiros, ensinar às pessoas a ler e a escrever. Foi muito gratificante.

Foi colocado em Vila Franca de Xira nessa altura?
Fui para a Escola n.º 1, só depois fui para a Reynaldo dos Santos. Mas antes de dar aulas ainda fui presidente da Junta de Alhandra, outra experiência muito positiva que me ensinou muito. Sempre procurei nortear a minha vida cívica e política na procura do bem comum e dando prioridade ao interesse público sobre o interesse individual. Por isso, além de professor, fui autarca, jogador de futebol, ator amador… é muito importante ter estas experiências tão diferentes na vida.

Tudo antes de vir para o Liceu Camões?
Sim, então dei aulas na n.º 1 e na Reynaldo dos Santos, em Vila Franca de Xira, depois vou para a Gago Coutinho, em Alverca, e vou para a direção. Faço a profissionalização, e quando abriu a C+S de Alhandra vou para lá, para o meu primeiro cargo de presidente do conselho diretivo. Só em 1992 venho para Lisboa, para a Escola Veiga Beirão, e em 93 chego ao Camões.

Durante anos, João Jaime Pires lutou para que fossem feitas as urgentes obras de reabilitação do Liceu Camões

Somos uma escola plural, marcante, e estas paredes, embora hoje renovadas,
os móveis, os livros… tem-se a sensação de que a História passou aqui.”

E como foi ser professor numa escola com tanta história?
Sim, tem um peso histórico muito grande, por aqui passaram muitos nomes da fina flor da nossa intelectualidade, desde escritores, políticos e cientistas, como António Guterres, Mariano Gago, os irmãos Lobo Antunes, Jorge de Sena, Álvaro Cunhal, Sousa Franco, Marcello Caetano… e muitos mais. Como professores tivemos Mário Dionísio, Vergílio Ferreira, Rómulo de Carvalho, Eduarda Dionísio… Portanto, aqui estava eu, um jovem da província, caído de paraquedas no liceu que tem uma certo elitismo e quer transformá-lo numa escola mais aberta, democrática, cultural, um espaço onde os jovens podem ser felizes.

Começou logo a imprimir o seu cunho de pedagogo…
Vim em 93, e em 94 fui para a direção à noite. Havia mais de 1500 alunos no ensino noturno, era muito forte, mas como tinha o dia livre, tive também uma experiência muito interessante numa escola profissional onde havia cinema, jornalismo e música. Durante uns anos acumulei, mas sim, tentei que fosse uma escola mais aberta ao exterior. Isto porque havia a ilusão de que a sala de aula era sagrada. Sair da sala de aula para ir a uma visita de estudo, para assistir a uma atividade cultural, ou uma conferência, era quase uma heresia. Sofri um bocado até eventualmente algumas atividades aqui no ginásio acontecerem, como a Orquestra Metropolitana vir cá ou outras atividades que pudessem dar também uma visão mais alargada do que é a escola.

Há sempre imensos eventos culturais a acontecer nesta escola!
A cultura para mim é essencial. Atualmente temos um leque variado de atividades extracurriculares, como música, teatro, cinema, desporto, dança… Temos protocolos com a Orquestra Metropolitana, com a Antena 2, com o cineclube ABcine… acredito que às escolas está confiada uma missão de serviço público insubstituível: providenciar a cada um dos cidadãos as competências e conhecimentos que lhe permitam explorar plenamente as suas capacidades e dar um contributo para a sociedade.

O que lhe dava mais prazer em ser professor?
Sentia o mesmo que sinto hoje, embora em tempos diferentes, porque a escola mudou bastante, que era possível mudar a sociedade, que a educação era um factor de mudança, aquela ideia de que a educação podia ser um elevador social. Se calhar vivíamos na utopia, no sonho de que se nós nos dedicarmos podemos dar conhecimento, cultura, e fazer com que as pessoas melhorem a sua vida.
Para a minha geração isto era muito importante, hoje essa ideia já está tão generalizada que não se valoriza tanto, mas naquela altura o país tinha uns números muito assustadores no ensino. Em 1974, da minha turma da 4.ª classe apenas cinco dos 28 jovens seguiram para o ensino superior.

Este ano comemora-se os 50 anos do 25 de Abril, como vê o Ensino Público hoje?
Sinto uma tristeza muito grande. Nos anos 80 havia falta de professores porque havia uma resposta a dar para que o país mudasse. Nunca esperei chegar ao final deste percurso e ver que há jovens que não têm professores. O que é grave é que o ministério já sabia há muito tempo da aposentação massiva dos professores que entraram nos anos 80, era só fazer contas. Não deram prioridade, desvalorizaram a carreira, desmotivaram as pessoas.

Numa sala de aula onde se lê “26.04.1974. Os nossos colegas estavam diferentes, os nossos professores pareciam outros professores”

Procuramos ter muitas atividades culturais. Tivemos uma palestra sobre política internacional, trouxemos dois resistentes antifascistas para falarem sobre a opressão na ditadura.
Os miúdos são muito participativos.”

Não é uma profissão aliciante?
Quando fui para professor, a sociedade valorizava a profissão. Podíamos não ter o melhor ordenado, mas sentíamo-nos reconhecidos. Se perguntarmos aos alunos quem quer ser professor, a resposta é 1 ou 2 ‘talvez’. Mas não é só cá, viemos agora da Grécia e também é assim. Há qualquer coisa de errado quando as pessoas preferem andar no turismo em tuk tuks a conversar que ser professor.

Um professor que venha para Lisboa ou Porto 
tem muitas dificuldades financeiras…
Com esta inflação de habitação, um professor nem consegue pagar um pequeno apartamento com o seu ordenado, não pode comprar um livro, ir ao cinema, ter uma atividade cultural.

Viemos de uma taxa de pessoas que não sabiam ler
 nem escrever em 1974 de 25%…
Sim e não há cá nostalgias de que no outro tempo é que era melhor, no meu tempo é que se sabia. Hoje, os jovens sabem muito, conseguimos inverter esses dados terríveis, mas sabemos como tudo é frágil, se abandonarmos a saúde e a educação públicas caímos outra vez em dados muito preocupantes.

Que conselhos daria ao novo ministro da Educação?
Que é fundamental, vital, valorizar a formação de professores. Valorizar o ensino profissional, eu, por exemplo, sou oriundo deste tipo de ensino. Acabe-se com a ideia de que os alunos do profissional não precisam de matemática ou filosofia. Gostava que se estabelecesse como escolaridade mínima obrigatória a licenciatura, mesmo no ensino profissional… temos os politécnicos. Gostava que se abandonasse a ideia de que a escola só é exigente se se fizer exames. Estes só vão fazer com que as escolas fiquem mais concentradas em matérias e menos no ensino. Como diz Gonçalo M. Tavares, enchemos um balde e depois deitamos o balde fora. Sampaio da Nóvoa também diz uma coisa que nos deve fazer pensar: se houvesse exames aos 10 ou 12 meses para ver quem anda e quem não anda, teríamos logo aí os primeiros insucessos na vida.

Ficamos obcecados com o resultado do exame
 e não com as aprendizagens?
Era bom que não fossem em populismos desta natureza de ‘somos exigentes se houver exames’. Já que se gosta de olhar para o que se faz na Finlândia, há exames na Finlândia? Já não interessa saber… Vivemos momentos difíceis de ansiedade, depressão, de tristeza e sofrimento porque os miúdos vivem pressionados para terem notas muito altas.

Ter notas altas não deve ser uma obsessão, é isso?
Não, de todo, e o arquivo do Camões pode mostrar isso. Pessoas que foram brilhantes, algumas tiveram excelentes notas, outras nem por isso. Na geração do Crato só iam a exames aqueles que tinham notas inferiores a 14. Nessa altura, confiava-se que se se dava 14 valores é porque eram muito bons alunos, aqueles que eram fraquinhos iam ser testados nos exames.

A reabilitação do edifício e do espaço do antigo Liceu Camões foi feita pelo arquiteto Falcão de Campos (DR)

“Será um marco importante comemorar os 115 anos desta escola que foi projetada por Ventura Terra e reabilitada por Falcão de Campos, um antigo aluno do Camões.”

Qual foi a maior frustração que sentiu como pedagogo?
Foi com a ministra Maria de Lurdes Rodrigues, que eventualmente começou com o desmantelamento da escola pública. Sinto que a partir daquela manifestação com 120 mil professores na rua, a Escola mostrou que era preciso olhar para as pessoas de outra maneira… Foi ela quem disse “eu perdi os professores mas ganhei os pais e a população”. Na verdade ela perdeu o país e a partir daí a escola tem sido sempre madrasta.

Há democracia nas escolas, ouve-se os alunos?
As escolas têm de ser espaços de democracia e de liberdade, em que todos se sintam parceiros: alunos, professores, funcionários, pais. Convidar uns alunos para irem falar com eles, não é ouvir a voz dos alunos. É preciso que isso seja estrutural. Até os partidos precisam de repensar os modelos, muitos afastaram-se da importância que a juventude pode ter e depois ficamos todos surpreendidos pelo aumento de partidos populistas…

Este ano vai reformar-se…
Sim, 2024 será o meu último ano, quando as obras de reabilitação estiverem concluídas. Têm sido anos de aprendizagens muito grandes, com professores marcantes. O Camões continua a ser uma instituição de referência no ensino, um espaço de vivências enriquecedoras em que a cultura é basilar e em que há respeito pela pessoa e suas sensibilidades.

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