Lembra-se da série televisiva ‘Dr. House’, em que o médico que dava o nome à trama descobria as doenças misteriosas de que sofriam os pacientes? Num episódio, uma mulher chega ao hospital com problemas respiratórios graves, dores pélvicas tão fortes que mal consegue andar. Mil e um exames são feitos, mil e uma hipóteses de diagnóstico são elaboradas mas só quando sangra pelo nariz é que o dr. House consegue juntar as peças do puzzle dos sintomas e conclui que a paciente tem endometriose. Sabemos que é uma série de ficção e se centra em casos poucos comuns, mas a endometriose é uma doença bem real e nada rara pois afeta mais de 176 milhões de mulheres em idade reprodutiva calcula-se que atinja, em Portugal, 700 mil mulheres. Mas do que se trata?
O QUE É
A endometriose é uma doença crónica que se caracteriza pela presença de focos de tecido do endométrio (o mesmo que reveste internamente o útero) fora deste órgão, seja na bexiga, ovários, intestino, reto, abdómen, e em casos mais raros nos pulmões, nariz e pele.
O problema é que estes focos, tal como o endométrio, são influenciados pelo ciclo menstrual e comportam-se de forma idêntica na altura do período, o que significa que quando menstrua, “não só o endométrio escama, sangra e prolifera, o mesmo acontece aos focos fora dele”, diz-nos Fernando Cirurgião, ginecologista-obstetra e diretor deste serviço no Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa. Ora isto vai dar origem a um processo inflamatório que é acompanhado por dores fortes, muitas vezes incapacitantes. Além disso, estes focos, ao ‘invadirem’ os órgãos vizinhos, podem provocar problemas graves, como a perfuração do intestino, estrangulamento dos ureteres (que conduzem a urina dos rins à bexiga) e colapso dos pulmões. “É uma doença complicada porque é considerada benigna mas pode ter quase um comportamento de patologia maligna, tal é a potencial gravidade e o envolvimento de órgãos vizinhos, além das complicações associadas, como a infertilidade”, diz-nos o ginecologista.
MISTERIOSA E DESCONHECIDA
Apesar de o número de mulheres afetadas ser substancial e de estarmos em pleno século XXI, a origem da endometriose continua a ser um mistério para a medicina. Por ser muito complexa e talvez por estar relacionada com a sexualidade feminina e ainda haver preconceitos associados, é uma doença que, infelizmente, está ainda longe do radar dos médicos. “É subdiagnosticada porque vai-se andando com essas dores abdominais, tomando inflamatórios ao longo de anos. Mas é uma doença muito debilitante porque a dor crónica tem impacto na qualidade de vida. Quando há o quadro clínico de dores menstruais, pélvicas, nas relações sexuais é para se ficar alerta e suspeitar que é uma endometriose, ainda que uma mulher pode ter endometriose e não ter esta tríade de sintomas, apenas um isolado. Confirmação de diagnóstico só através da laparoscopia”, revela Fernando Cirurgião.
5 a 10% das mulheres em idade fértil têm endometriose
QUAIS SÃO OS SINTOMAS
São vários e nem todas as mulheres os têm ao mesmo tempo.
Pode ter endometriose durante anos sem ser diagnosticada e os sintomas só se manifestarem quando a doença já está mais avançada. Os sintomas podem ir progredindo ao longo dos anos e existirem isoladamente. Não tome as suas dores como algo normal, fale delas sem preconceito ou vergonha.
. Períodos menstruais muito longos (superiores a 7 dias) e com grande perda de sangue.
. Menstruações acompanhadas por dor forte, dor pélvica, que podem durar vários dias, além dos do período. Podem não ter alívio rápido mesmo tomando anti-inflamatórios.
. Dores durante e depois das relações sexuais, o que vai fazer com que as mulheres fiquem ansiosas e evitem ter sexo.
. Distúrbios intestinais e urinários. Podem incluir diarreia, obstipação, dor ao urinar, sangue na urina (em que a urocultura não revela agentes bacterianos), vontade frequente de fazer xixi. Há ainda quem sinta náuseas, vómitos e flatulência.
. Dificuldade ou impossibilidade de engravidar, infertilidade.
30% das causas de infertilidade feminina têm por trás um diagnóstico de endometriose
QUAIS SÃO OS TRATAMENTOS
A má notícia é que ainda não há cura, mas pode ir controlando os sintomas com diferentes tratamentos, apesar de não travarem a evolução da doença. “Quem tem endometriose só se livra dela depois da menopausa ou na gravidez, aí não tem sintomas. De resto, enquanto estiver na idade fértil tem de fazer tratamentos cirúrgicos para tirar os focos que são identificados. Depois, como manutenção, e como é uma doença hormonodependente, temos os tratamentos hormonais. Antes usava-se as pílulas convencionais, mas agora há um tratamento com progesterona sintética. Se me perguntar durante quanto tempo se faz, tenho de responder que é para se ir fazendo”, afirma Fernando Cirurgião. Há ainda o uso de agonistas da GnRH e inibidores de aromatase, mas são terapêuticas agressivas e com muitos efeitos secundários. “Quanto à histerectomia, essa é a última solução a que se recorre, quando a mulher não consegue controlar a dor e já não tem de preservar a fertilidade, aí retira-se o útero e os ovários.”
Se suspeita de ter endometriose, contacte o seu ginecologista para qualquer esclarecimento ou despiste, ou procure ajuda na associação portuguesa de apoio às mulheres com endometriose: mulherendo.pt. Não fique em silêncio, porque não é normal sentir dor.
DESCOBERTA TARDIA
Em média, as mulheres descobrem que têm endometriose, cerca de 8-12 anos depois dos primeiros sintomas. “Mesmo que tenham o período aos 12-13 anos, os ciclos menstruais só estabilizam pelos 16, depois andam com dores menstruais e abdominais inespecíficas, fazem tratamentos para a dor, tomam anti-inflamatórios, até que mais tarde na vida acabam por fazer algum estudo e isso pode levar ao diagnóstico. E aí já têm vinte e tal anos”, diz o ginecologista Fernando Cirurgião. Muitas acabam por descobrir que têm endometriose quando tentam aprofundar as razões pelas quais não engravidam.