Se vive em ambientes urbanos, sabe como é difícil escapar ao ruído. Não acordamos com o canto do galo, mas sim com o apito do alarme. Vamos de carro para o trabalho, e entre buzinadelas pomos o rádio para tentar abafar o ruído circundante. Se formos de transporte público, ou aguentamos as conversas alheias e o ruído dos carris ou trânsito ou nos isolamos com a ajuda de auscultadores a ouvir música, o nosso programa de rádio ou podcast favorito. Chegamos ao trabalho e já os nossos ouvidos estão saturados de sons quando temos de passar mais oito horas a ouvir conversas, telefones a tocar e notificações constantes. A pausa para almoço traz-nos mais uma sinfonia ensurdecedora de pratos e talheres e música ambiente aos berros que competem com os decibéis das conversas que as pessoas bem esforçam em ter. À noite temos a tv ligada para nos fazer companhia ou os miúdos a implicarem um com o outro…O ruído é tão preponderante no nosso dia a dia que quando pomos a cabeça na almofada ainda leva algum tempo a habituarmo-nos ao silêncio.
Consequências do ruído constante
Um dos principais problemas de saúde provocados por exposição constante a ruído (e o mais evidente) é a surdez progressiva. Os primeiros sinais sentem-se quando começamos a ter dificuldade em entender com nitidez aquilo que nos estão a dizer. Além do problema físico, isto tem impacto a nível emocional e social pois pode levar a pessoa “a um isolamento progressivo, que está na origem de patologias mais graves como a ansiedade, depressão e demência. Outros efeitos da exposição ao ruído são a fadiga, as doenças cardiovasculares e as perturbações do sono, que podem terminar numa doença mental”, diz-nos Sofia Paiva, médica otorrinolaringologista. “Quando estamos expostos cronicamente a um som de intensidade elevada, verifica-se um desequilíbrio no nosso sistema nervoso, com uma ativação do sistema nervoso simpático que é responsável por respostas primárias de fuga e luta. Este tipo de estímulo do sistema nervoso central associado às perturbações do sono vão contribuir para um aumento da frequência cardíaca e da tensão arterial, com um aumento das doenças cardiovasculares”, remata a especialista.
Ruído e ansiedade
“Não há estudos que digam que há uma causa-efeito direta entre ruído e ansiedade e depressão, mas quando o sono – que é uma necessidade básica, quase como comer – é perturbado, no dia a seguir estamos mais irritados e sensíveis, com um olhar mais negro e triste porque estamos em perda. E como uma das coisas que mais perturba o descanso noturno são os ruídos, se estes existirem de forma consecutiva isso pode ter impacto ao nível das perturbações de ansiedade, de humor, como a depressão, além de problemas cardiovasculares. Há um relatório da Agência Europeia do Ambiente de 2015 que diz que cerca de um quarto da população europeia é afetada por níveis de ruído do tráfego rodoviário superiores a 55dB”, alerta-nos Cristina Sousa Ferreira, psicóloga na Oficina de Psicologia, “hoje em dia, é quase impossível não estar exposto à poluição sonora, e esta passa pelo tráfego automóvel e aéreo, pelo uso de auscultadores, até às atividades profissionais ou de lazer, como concertos e eventos desportivos. Algumas destas exposições podem nem ser desagradáveis, e como tal podem não ser percebidas como perigosas para o nosso ouvido, mas a verdade é que mesmo que as pessoas não se sintam desconfortáveis, por haver uma habituação subjetiva ao ruído excessivo, os efeitos nocivos ocorrem”, esclarece a médica Sofia Paiva.
De acordo com a Agência Europeia do Ambiente (AEA), a exposição contínua ao ruído resulta em aproximadamente 41.000 novos casos de doenças cardíacas e 11.000 mortes prematuras na Europa, todos os anos.
A cacofonia dos open spaces
Não é só a nossa vida pessoal que é afetada pelo ruído excessivo. Por arrasto, o nosso trabalho também sai prejudicado, sobretudo se exige algum esforço intelectual e concentração. A moda de trabalhar em open spaces – em que as pessoas são colocadas em espaços amplos e abertos, sem paredes – nos quais passamos 8h a ouvir (mesmo que não queiramos) não só as conversas dos colegas, como os toques e notificações de telemóvel, a fotocopiadora a trabalhar, tem consequências na nossa produtividade porque o esforço de nos concentrarmos na tarefa que temos à frente é muito maior quando estamos rodeados de dezenas de conversas. Quem é que se consegue abstrair? Alguns com certeza, mas não todos.
Vivemos em tal cacofonia que até a nossa capacidade de atenção diminuiu de 12 para 8 segundos desde o ano 2000, revelam cientistas canadianos depois de fazerem um estudo com mais dois mil participantes. Se pensarmos que a capacidade de concentração de um peixe-palhaço (sim, o Nemo) é de 9 segundos, é caso para nos preocuparmos. A única maneira de equilibrarmos este desgaste físico e mental é termos algum tempo em silêncio. Vários estudos comprovam que algum tempo em solidão e silêncio promove o bem-estar físico e mental, além de promover a criatividade. Uma pesquisa realizada em 2013 com ratos de laboratório, publicada na revista médica ‘Brain Structure and Function’, comprovou que duas horas de silêncio por dia podem fazer com que haja um acréscimo de mais células no hipocampo (uma parte do cérebro relacionada com a memória, as emoções e aprendizagem). Um incentivo para arranjarmos tempo para momentos silenciosos.
Silêncio que se vai ouvir… nada!
Estamos a atravessar uma fase em que parece que o silêncio causa lepra, mas é um fenómeno recente, lembra a autora Susan Cain no documentário ‘In Pursuit of Silence’, porque até há uns anos o silêncio e a reclusão eram atividades louváveis – basta lembrar que Jesus, Buda, Maomé e Moisés, todos eles tiveram os seus momentos de solidão e isolamento e ‘voltaram para o mundo’ para partilhar as suas revelações. Teremos ficado com medo do silêncio? “Se estou em silêncio parece que estou mais isolada e nós somos animais sociais, penso que seja por isso que cada vez mais se procura criar ambientes para cativar as pessoas”, diz a psicóloga. Mas o nosso cérebro precisa de silêncio, para descansar, para dormir, e é preciso reduzir-se os estímulos sonoros. “O problema é que o cérebro consegue entrar em fases diferentes do sono mesmo com a exposição ao ruído. Nesse caso, mesmo quando estamos a dormir, os ouvidos ainda estão a ‘trabalhar’, ou seja, ainda estão a ser estimulados. Se falarmos suavemente com alguém que está a dormir, podemos mesmo conseguir que essa pessoa mude de posição na cama sem acordar verdadeiramente. A audição é um trabalho de equipa entre o ouvido, que capta o som e o transforma numa mensagem nervosa, e o cérebro, que descodifica essa mensagem. Enquanto o cérebro pode desligar, o ouvido está sempre a funcionar, sobretudo se houver ruído à volta, mas, tal como outro órgão qualquer, o ouvido também precisa de recuperar durante a noite” alerta a otorrinolaringologista Sofia Paiva.
Como estarmos expostos a ruído constante faz com que os nossos sentidos fiquem dormentes, se nos obrigarmos a ter uns minutos de silêncio por dia fará um bem tremendo à nossa saúde, além de nos tornar mais conscientes do mundo que nos rodeia. No trabalho, proteja-se usando tampões para os ouvidos ou auscultadores normais (que já ajudam imenso), ou com modelos ‘noise cancelling’, que permitem reduzir bastante o ruído exterior (embora não sejam nada baratos, custam à volta dos 200-300 euros); e faça intervalos de 10 minutos a cada 50, vá até espaços que sejam mais silenciosos, como a escada de incêndio. Se mora na cidade, para travar a entrada de ruído em casa é importante ter vidros duplos (com isolamento acústico) e cortinas grossas nas janelas (mais um obstáculo à passagem do ruído). Os tapetes no chão também ajudam a não propagar o som. Há vários materiais de isolamento acústico à venda nas lojas de bricolage que poderão ajudá-la a manter a sua casa e a sua vida mais silenciosas, porque, como diz a sabedoria popular, o silêncio é mesmo de ouro.
BOTÃO DE PAUSA
O que ler, ver, ouvir e experimentar para dar ao silêncio a importância que ele merece e para nos inspirar a tê-lo mais presente na nossa vida.
LIVROS:
‘Silêncio na Era do Ruído’, Erling Kagge, Quetzal
‘O Silêncio do Mundo’, Eckhart Tolle, Pergaminho
CONFERÊNCIAS:
Ted Talk ‘Art of Stillness’
de Pico Iyer
Ted Talk ‘The Power of Silence’,
de Neal Gittleman
DOCUMENTÁRIOS
‘In Pursuit of Silence’, Patrick Shen, iTunes Store, Amazon Video
PASSEIOS
Banhos de floresta
Passeios e Workshops na Mata dos Medos, Costa de Caparica. Inscrições em: institutodebanhosdefloresta.pt
APP
‘Calm’ ou ‘Headspace’: aplicações para ‘limpar’ a cabeça e ajudar a concentrar-se.
MÚSICA
4’33’’ A composição mais famosa (e polémica) de John Cage, em que durante quatro minutos e trinta e três segundos só se ouve… silêncio.