
Veja aqui a conversa que tivemos com as duas especialistas em ginecologia- obstétricia: Cândida Pinto, que exerce a sua profissão no Porto, e é uma das autoras do livro ‘A relação médico-doente’, editado pela Ordem dos Médicos com o intuito de levar à UNESCO a proposta de tornar a relação médico-doente Património Imaterial da Humanidade; e Marcela Forjaz, exerce na zona de Lisboa e é autora de vários livros, entre eles, ‘Estas Hormonas Deixam-me Louca’ ou ‘O Grande Livro da Grávida’.
Quais são as queixas mais frequentes de quem entra no seu consultório?
Marcela Forjaz: As alterações do ciclo (atrasos ou ciclos curtos, hemorragias, dores menstruais), as vulvovaginites (corrimentos com ardor ou prurido, com ou sem odor) e as dores na atividade sexual. Também há queixas relacionadas com a toma da pílula e na menopausa as que se relacionam com esta fase, como os afrontamentos, entre outras.
Há problemas emocionais que dão origem a problemas físicos?
CP: Muitos! Muitas vezes as mulheres entram no consultório a dizer ‘tenho uma dor no ovário’, e apontam para a barriga. Para nós, mulheres, os nossos órgãos reprodutores têm bastante importância e achamos que ocupam um grande espaço, mas a verdade é que nós somatizamos muitas coisas para o abdómen, e frequentemente aquelas queixas têm a ver com um cólon irritável, uma doença intestinal relacionada com stresse, alterações alimentares. A ginecologia tem a ver com muita coisa, com a sexualidade, expectativas, o aparecimento de vida, a gestação, e com o fim, a ginecologia oncológica. Não há consulta de ginecologia bem feita sem ter em conta a mulher na sua globalidade. A postura, o olhar, a sensação de alegria ou tristeza acabam por nos dar muita informação, e nós temos de ter o cuidado e delicadeza para abordar os problemas.
“Não podemos ver uma mulher que entra num consultório como um útero e uns ovários. A ginecologia chama a si diversos aspetos que não são orgânicos, e a verdade é que no nosso útero e nos nossos ovários são concentradas muitas emoções e situações em que a doença é uma somatização. Eu costumo dizer que a paciente está à vontade quando tira a carteira do colo”, diz Cândida Pinto, ginecologista-obstetra.
Continuamos a ir à consulta só quando temos uma suspeita ou queremos engravidar?
MF: As mulheres que recorrem à consulta regular apenas quando têm queixas são uma minoria. Felizmente vamos assistindo a uma crescente preocupação por parte da mulher com a sua saúde, independentemente se tem ou não queixas do foro ginecológico.
Qual deve ser a idade da primeira consulta?
MF: É variável. A Pediatria acompanha as jovens até aos 18 anos, embora muitas vezes sejam os próprios pediatras a solicitar a colaboração do ginecologista. A maior parte das mães, mais consciente do papel da ginecologia na sua própria saúde, manifesta também a preocupação relativamente à idade em que as filhas devem iniciar essa vigilância. Não havendo queixas relacionadas com o ciclo menstrual, e partindo do pressuposto que desde que uma adolescente é menstruada terá eventualmente irregularidades menstruais nos primeiros dois anos, sem que isso traduza qualquer problema, diria que a jovem deve iniciar o seu acompanhamento quando sente necessidade de falar com alguém (para além da esfera familiar) sobre a saúde sexual e reprodutiva. Outras razões para recorrer à consulta serão as queixas, como dor com a menstruação, hemorragias, ou ciclos (mesmo dentro do aceitável das irregularidades) demasiado curtos ou demasiados longos. O início da vida sexual é outro motivo frequente para o início da vigilância ginecológica.
CP: O primeiro teste Papanicolau, a primeira citologia, deve ser feito 3 anos depois do início da atividade sexual. A consulta de ginecologia tem interesse a título informativo e para as meninas tomarem contacto com alguém que vai tratar da sua intimidade. Eu defendo que a primeira consulta não tenha exames ginecológico para não ser invasiva, e convém ser feita antes do início da atividade sexual para podermos esclarecer dúvidas num espaço onde se sintam à vontade para fazer perguntas sobre sexualidade, prazer, método contracetivo. Mas elas têm de querer vir, já tive meninas que vieram porque os pais quiseram.
O que eu digo às mães é que, quando houver o pressentimento que elas poderão vir a iniciar a vida sexual, porque terá um namorado, pode vir a uma consulta de contacto com o ginecologista.
Que exames se deve fazer com frequência?
MF: A calendarização dos exames depende da idade da mulher e nem todos são para ser feitos anualmente, mas os que se fazem com mais regularidade são a colpocitologia (Papanicolau), mamografia e ecografia mamária, ecografia pélvica e osteodensitometria, na pós-menopausa. A colpocitologia é o exame de rastreio de cancro do colo do útero e pode ser complementada com a pesquisa de HPV e identificação do seu subtipo, para auxílio à tomada de decisões terapêuticas quando na presença de lesões do colo. A colposcopia é outro exame auxiliar na marcha diagnóstica para decisão terapêutica perante patologia do colo, podendo orientar a execução de biópsias do colo. A ecografia permite esclarecer eventuais alterações que se tenham detectado na palpação ou, quando a informação dada pelo exame físico é limitada, constitui um complemento importante à informação que até aí se obteve.
Há doenças assintomáticas às quais é preciso estar alerta?
MF: Classicamente, dizemos que um dos cancros mais silenciosos é o do ovário, o que é ainda uma verdade, já que quando dá sintomas é, muitas vezes, numa fase adiantada da doença. O cancro do colo do útero será outra patologia que pode ser assintomática até tarde, embora com uma adesão cada vez maior aos programas de rastreio e com o cumprimento do programa nacional de vacinação o objectivo é de que daqui a uns anos seja uma patologia residual; o cancro de mama é outra patologia que também cursa de forma assintomática até bastante tarde, sendo este aspeto também atalhado pelo cumprimento dos programas de rastreio.
CP: Tirando o cancro do colo do útero, temos o cancro do ovário numa idade mais tardia que pode ser assintomático, o cancro do endométrio que aparece muitas vezes nas mulheres pós menopausa e que é assintomático. Habitualmente, as coisas não sintomáticas iniciais são na maior parte das vezes oncológicas, mas também podemos ter uma obstrução das trompas que não dá qualquer sinal, só depois no estudo de uma infertilidade conseguimos saber. Mas a maior parte das doenças ginecológicas acabam por dar algum sintoma que nós acabamos por apanhar, muitas vezes não são é queixas diretas.
Mas tenho de alertar para o seguinte: é um absurdo haver mulheres em Portugal e no mundo que chegam às consultas de oncologia com cancro do colo do útero em estadio avançado. Isto porque é o único cancro que pode ser evitado, ele ‘avisa’ que vai aparecer, através de lesões precursoras que são facilmente tratadas. Não temos tratamento para o vírus que causa as lesões, mas temos tratamento para a lesão, consequência do vírus. Se numa mulher for detetada uma lesão pré-neoplásica e se ela for tratada, não vai morrer de cancro do colo do útero se for seguida por um especialista.
“Hoje em dia, a ginecologia integrativa é um conceito mais abrangente que procura olhar a mulher como um todo, investindo no seu bem estar, educação para a saúde e motivação para a aquisição de hábitos de vida saudáveis nas suas várias vertentes, pessoal, familiar e integração na comunidade”, diz-nos Marcela Forjaz, ginecologista-obstetra.
O vírus de que fala é o Vírus do Papiloma Humano, HPV, precursor do cancro do colo do útero?
CP: Sim, o vírus HPV é o responsável pelo aparecimento das lesões. Nós hoje em dia temos facilidade em apanhar o vírus, na verdade são catorze os vírus HPV que podem dar lesão. Uns mais persistentes e com maior tendência a recidivar que outros. A citologia (teste Papanicolau) alerta-nos para a existência de uma lesão, o que nos permite intervir. E os rastreios são fundamentais. A nível nacional temos o rastreio Siima que está a funcionar muito bem ao nível dos centros de saúde, o problema são as mulheres mais diferenciadas que não vão aos centros de saúde e adiam sucessivamente as consultas de ginecologia por causa do trabalho.
Apanha-se este vírus só através de relações sexuais desprotegidas?
CP: Há pessoas que nunca tiveram atividade sexual e têm cancro do colo do útero por HPV, nós não conseguimos explicar, deve haver uma via de transmissão que não apenas a via sexual. Mas se pensarmos que 80% da população está afetada, nós não vamos dizer que o vírus entrou pela janela quando ele pode entrar pela porta. Teoricamente, todas as mulheres estão infetadas desde que tenham uma relação sexual. Não tem a ver com o número de parceiros que se tem, nós fazemos o teste Papanicolau a todas as mulheres com atividade sexual porque partimos do princípio que todas as mulheres estão infetadas e os homens também. Quando temos um parceiro, damos e recebemos vírus.
A escolha de um anticoncetivo,
como a pílula, tem de passar pelo médico?
CP: Sim, claro! A pílula, por exemplo, é um medicamento. E há uma grande falta de informação sobre como funcionam os anticoncetivos, quais as limitações… Eu digo às minhas doentes que podem tomar a pílula o tempo que quiserem, desde que não tenham familiares com acidentes trombóticos, não sejam fumadoras, e conforme a idade que têm. Porque, por exemplo, uma mulher fumadora com mais 35 anos está absolutamente proibida de usar um método contracetivo com estrogénios. Uma mulher não pode ir à farmácia pedir uma pílula igual à da amiga. Temos de saber se tem dores de cabeça quando está para vir a menstruação, que pode um sinal de alarme para um efeito trombótico. Ou seja, uma mulher pode ter enxaquecas naturalmente, mas se elas piorarem ou tornarem frequentes com a toma da pílula – e isso é independentemente da idade – deve parar. Há vários métodos contracetivos com estrogénios e progestativo, ou só com progestativo. Os estrogénios são os que têm um risco trombótico. Os fatores de risco não são somatórios, são exponenciais: se eu tiver uma mulher com mais de 35 anos, que fuma, e que tem enxaquecas, é uma bomba relógio. Há pouca informação, as pílulas são muitas vezes dadas de uma forma leviana, sem acompanhamento porque está vulgarizado, mas a pílula é um fárm
aco que atua em diversos compartimentos e acaba por dar uma certa secura vaginal e também diminui a libido.
Há adolescentes que já tomam a pílula…
CP: Ver miúdas de 14-15 anos a tomar a pílula, para mim é de cortar os pulsos… Sei que há mães muito ansiosas porque o período das filhas veio há 6 meses e não é regular. Não sabem que isso é normal e levam a um médico e, se este for menos prudente, pode prescrever uma pílula para regularizar que não é adequada logo no início só porque tem irregularidades menstruais que são próprias da idade. A pílula não regula nada, é um medicamento que vai bloquear a maturação ovárica. É claro que se tiver uma atividade sexual muito grande em que o risco de gravidez na adolescência seja muito forte, aí tenho de ponderar; ou se houver hemorragias muito fortes, aí pode estar indicada, mas tem de se fazer um estudo aprofundado e encontrar uma solução à medida de cada paciente.
Falar de sexualidade ainda é um tabu?
CP: Ainda hoje em dia há muitas mulheres com problemas de índole sexual, e a maior parte não fala se não houver uma empatia. Há muitas mulheres com a falta de apetite sexual. Eu costumo dizer que nós, mulheres, amamos com a cabeça, o coração e o sexo, e quando os 3 não estão de acordo as coisas não funcionam. Pode não ser um problema orgânico, e temos de perceber se está no coração ou na cabeça.
MF: Ainda há tabu, mas cada vez menos. Acredito que a libertação destes preconceitos dependerá também da abertura que encontra quando se aborda questões relacionadas com a sexualidade ou mesmo da iniciativa do médico em questionar sobre esses aspetos. Felizmente a mulher encara cada vez mais a sexualidade como algo natural.
Costuma prescrever suplementos?
MF: Como indivíduos diferentes que somos, também as nossas necessidades de suplementação terão variações e devem ser individualizadas. Como orientação básica, diria que as mulheres que pretendem engravidar deverão fazer ácido fólico e iodo; as que estão na pré-menopausa deverão apostar na vitamina D e nos ómegas, assim como as que estão em menopausa.
CP: Sim, por exemplo, uma mulher que toma a pílula durante muito tempo tem uma depleção de ácido fólico, deve tomá-lo regularmente. Outra coisa que estou muito atenta é a vitamina D, que está muito implicada na fertilidade. Nós até somos um país com grande exposição solar mas usamos muitos produtos protetores, mesmo os cremes de rosto têm proteção. Deve haver uma exposição solar de 20 minutos no mínimo por dia sem nenhum tipo de protetor em horas que sejam adequadas.
Ir a uma ginecologista, mulher, é uma mais-valia?
CP: Sempre houve o mito de que os ginecologistas homens eram mais meigos. Não percebo de onde veio essa ideia. Eu sou mulher e vou ao ginecologista, sei exatamente o que está a sentir e isso obriga-me a ter uma delicadeza extra. Sabemos que o uso de um lençol sobre os joelhos dá-nos mais conforto, percebemos o embaraço. Há também o conhecimento per si de algumas patologias: um prurido ou corrimento que já passaram por nós… Isso não quer dizer que seja melhor ginecologista que um colega, mas acho que nos dá uma sensibilidade especial.