O arquiteto Tiago Mota Saraiva foi fotogrado no Centro Cultural e Comunitário do Jardins do Bombarda, Lisboa. (fotos: João Lima)

Um oásis no meio da ruidosa e escaldante Lisboa. É essa a sensação que se tem quando se entra nos Jardins do Bombarda, o centro cultural e comunitário, a nova ‘casa’ da cooperativa Largo Residências, que funciona numa parte nos jardins do antigo Hospital Miguel Bombarda. Tiago não podia ter escolhido melhor o local para a nossa entrevista, ou não fosse ele um acérrimo defensor do cooperativismo e participação popular. O tema da conversa é, como não podia deixar de ser, habitação, ou melhor a falta dela, e deu pano para mangas.  

Começo por lhe pedir para resumir quem é o Tiago?
Sou arquiteto de formação, fiz uma especialização em Arquitetura, Território e Memória, sou urbanista, identifico-me muito com a discussão sobre os temas da cidade, pai 3 filhas, que é uma coisa muito relevante, porque são o meu grande projeto. E depois sempre muito ativo e crente no potencial das iniciativas de desenvolvimento local. 

Na sua opinião, quais os grandes culpados de termos neste momento um problema gravíssimo de habitação? 
São vários. Um deles foi que, em Portugal, a partir do final dos anos 80, entendeu-se que as pessoas deviam aceder a uma casa através da compra de habitação própria. Há um documento muito interessante do IHRU (Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana), que fez a avaliação das políticas públicas entre 1987 a 2011, e revela uma coisa extraordinária: nesses 25 anos, apenas 13% da verba aplicada foi para construção de habitação pública, 75% foi para crédito bonificado. Ou seja, a grande política pública de habitação que houve foi dizer às pessoas: ‘endividam-se junto da banca, e nós pagamos um bocadinho’. Repare que a banca nunca perde dinheiro. Os nossos rendimentos nunca foram compatíveis com os valores das casas, fomos aos bancos  e assim tornámo-nos inquilinos da banca, sendo que esta recebe um valor, no final, muito maior do que o valor da casa. 

Vemos na compra de uma casa, uma prioridade, uma segurança, esquecemo-nos é que ao longo de 30 anos não somos donos dela.
E isso viu-se muito bem na altura da grande crise das dívidas em Portugal, em 2010-11, era de tal modo importante manter a casa que as pessoas preferiram abdicar dar de comer aos filhos de forma regrada, e isso é algo muito violento. Mas tudo isto torna o crédito à habitação para os bancos um negócio muito certo, porque a última coisa em que as pessoas cortam, é no pagamento da casa. 
Portanto, na minha opinião, a linha da proprietarização foi muito errada. O segundo problema teve a ver com a venda do património público, que foi sendo depauperado, espartilhado e deixamos de conseguir fazer políticas públicas por causa disso. 

De vez em quando há notícias que dão conta de edifícios públicos abandonados que são vendidos por um preço muito baixo, em vez de serem reabilitados. 
Sim, e agora estou receoso deste programa ‘Construir Portugal’, anunciando a passagem “semi-automática” de propriedade pública para grandes parcerias público-privadas. Receio que signifique que o Estado vai deixar de ter ainda menos edifícios e terrenos instrumentais que devia estar a usar para dar respostas públicas de habitação. Já se percebeu que há muitas entidades à espera para abocanhar propriedade pública em grandes negócios para grandes lucros. E, ao contrário do que se pensa, já não existem muitas ‘jóias’, grande parte delas foram vendidas.

Dê-nos um exemplo recente.
O hospital do Desterro, aqui bem próximo de onde estamos. 

Daria para habitação?
Com certeza, foi vendido há poucos anos, por 10 milhões de euros, dois dias antes do Natal, por uma sociedade que já a revendeu. O que sucedeu no Intendente, só para falar da zona onde estamos, foi o seguinte: o Estado vendeu uns edifícios públicos por tuta-e-meia, logo a seguir havia sempre umas revendas muito rápidas, sem haver qualquer reabilitação, só criação de mais valias, e depois a determinada altura, na 3ª ou 4ª revenda, finalmente alguém diz ‘vamos construir’. É claro que os preços são depois muito elevados. Isto é um fenómeno que em Portugal está completamente desregrado, o de venda após venda sem criação de qualquer mais-valia física, mas com enormes mais-valias financeiras. 
O imobiliário é um negócio que em Portugal sempre produziu enormes mais valias. 

Tiago Mota Saraiva

Há, hoje em dia, uma disneyficação dos centros das cidades que as tornam todas iguais, isso vai fazer com que os turistas se desinteressem.” 

O alojamento local tem sido apontado como um dos culpados da expulsão dos moradores dos bairros populares, mas não foi à sua custa que houve reabilitação de zonas degradadas da cidade?
Sim, é verdade, em alguns casos, e eu acrescento outro argumento favorável ao alojamento local: conseguiu, nos tempos de crise ser um acrescento ao rendimento de pessoas que, por exemplo, alugavam um quarto. Porque a ideia de AL começa com uma ideia interessante e identitária que é: vá para uma cidade viver como os locais. 

Já não estamos nesse nível?
Estamos longe disso, houve uma vampirização do que era o princípio do AL, grande parte foi abocanhado por grandes estruturas financeiras com grande capacidade económica. Em relação à reabilitação do edificado, muitas são débeis, de investimento mínimo, pinturas para mascarar, e também tornou inviável algumas habitações com alguma qualidade, pois foi autorizado o desmembramento de casas grandes, tornando mais difícil a reutilização e a reversão para habitação.

Não são só rosas…
Não, acho que tem muitas deficiências, muitas intervenções de fraca qualidade, porque o objetivo máximo era o lucro, a lógica era sempre essa e, mais uma vez, muito pouco regulado, outro problema que foi deixado ao mercado fruir.
E agora temos um problema muito grave, sobretudo, quando aqui em Lisboa, porque temos um Presidente da Câmara que é particularmente fã do AL, e não se pode ir a manifestações do alojamento local num dia, e no dia a seguir defender a identidade local dos bairros. São duas coisas incompatíveis. 
E há outro problema, a atividade turística é muito condicionada por elementos que são externos.

Que elementos são esses?
Um é a questão geográfica, temos uma guerra na Europa mas Portugal está longe da guerra, é seguro, e isso faz com que haja turismo. Por outro lado, temos a pressão de estrangeiros reformados virem comprar casas em Portugal. A forma robusta como o nosso SNS – mesmo com problemas – respondeu à covid-19, fez com que nós sejamos um país interessante para eles. 

Tornamo-nos num país com uma economia muito assente no ‘sol e mar’?
Sim, e não podemos estar dependentes da atividade turística, e se houver um terramoto? Adeus turismo durante muitos e longos anos. Se se institui a ideia que Portugal é um país ultra perigoso, porque está em falhas geológicas, que é verdade, imediatamente nós ficamos vazios dessa bolha e passamos a ter um problema. Ou seja, este desenvolvimento económico é insustentável, falso e imediatista. 

Mas há quem diga que Portugal tem capacidade para ter muito mais turismo.
Eu também gosto de fazer turismo, mas turistas como eu já não vão à Baixa, que está cheia de lojas iguais a todas as outras cidades. Esta disneyficação que se fez dos centros das cidades vai afastar muito turismo, e depois? 
Estamos a olhar para o turismo de forma muito alambazada, não é sustentável no futuro do ponto de vista económico.

Se dermos uma volta por Lisboa, e também já pela periferia, vemos habitação a ser construída que não é para os nossos salários.
Os centros das cidades são ocupados por prédios de luxo, AL, os bairros populares a serem esvaziados das pessoas que lá viviam há décadas, a população afasta-se para a periferia, e mesmo aí já se veem grandes empreendimentos cujos preços muitas pessoas não conseguem lá chegar. O que estamos a ver é a gentrificação, que tem a ver com a substituição de uma classe por outras financeiramente mais abastadas.
Nos centros urbanos em Portugal tem acontecido isso de uma forma muito acelerada. Ou seja, quando nós deixamos que o centro na cidade seja só de serviços de hotelaria e alojamento local, sabemos que estamos a criar pressão extra sobre as pessoas que vivem à volta e que eventualmente vão ser expulsas. Isto está mais que estudado. Só que há quem continue a acreditar que o mercado liberalizado tudo resolverá. Não resolve.

Tiago Mota Saraiva

O problema não é serem estrangeiros [a comprar casa em Portugal], o problema é terem muito mais capital, criam pressão, empurram as pessoas que cá vivem para fora de Lisboa. E as que viviam cá vão comprar a casa na periferia e empurram as pessoas destas zonas para mais longe. Criam-se assim dinâmicas terríveis e insustentáveis. As pessoas ficam cada vez mais longe do emprego.”

Continua a haver muitos estrangeiros a comprar casa em Portugal?
Segundo a Confidencial Imobiliário, os dados de 2022 revela-nos que 29% das compras feitas em Lisboa foram feitas não nacionais, e que o capital transacionado correspondia a 36%, ou seja, os estrangeiros compram mais caro. Cerca de 60% das compras de não nacionais, em 2022, era de França, Reino Unido, Estados Unidos, Brasil e China, e o preço médio de compra era acima dos 500 mil euros.
O problema não é serem estrangeiros, o problema é terem muito mais capital, criam pressão, empurram as pessoas que cá vivem para fora de Lisboa. E as que viviam cá vão comprar a casa na periferia e empurram as pessoas destas zonas para mais longe. Criam-se assim dinâmicas terríveis e insustentáveis. As pessoas ficam cada vez mais longe do emprego, mais horas até chegar ao trabalho e regressar a casa, muitas com crianças pequenas.

Como é que se podia resolver?
Não é certamente o Estado voltar a incentivar o crédito. Esta história do Estado dar uma garantia aos mais jovens para os empréstimos imobiliários à banca… não é um apoio aos mais jovens, é um apoio ao banco. E como volto a frisar, o crédito imobiliário para habitação própria é dos negócios mais seguros para a banca. Se a pessoa entrar em incumprimento, o banco não perde, fica com o imóvel que, no fundo, sempre foi dele. Portanto o que nós estamos a dar é maior segurança à banca quando empresta aos mais jovens, e sem pedirmos nada em troca à banca.

E o que se podia pedir?
O Estado regulava os modos de crédito, ou seja, dizia, ‘a banca só pode fazer spread até x’, mas não faz isso, continua a deixar ‘no mercado’. E isso não resolve o problema da habitação, e em termos sociais, a médio-longo prazo vamos ter uns impactos muito gravosos. A média de saída de casa dos jovens portugueses passou a ser 33 anos, e isso significa que regularizam as suas relações mais tarde, e têm filhos mais tarde. É uma enorme pressão também para a sociedade. 

Há outras cidades europeias que tenham sido gentrificadas desta forma tão rápida e que nos passam servir de exemplo para evitarmos erros? 
Sim Barcelona, por exemplo, e tem alguns paralelismos. Barcelona quer diminuir os alojamento local e hotelaria. Eu acho que nós vamos acabar por chegar lá. Neste momento só temos uma manifestação ideológica e pouco factual de tentativa de preservação do negócio de alojamento local. Eles estão mais à frente. 
E nós vamos, mais ano menos ano, ter de limitar as rendas, vamos ter de colocar tectos às rendas, porque a escalada de preços é tamanha que se vai perceber que, seja um governo de esquerda ou de direita, a determinada altura, o problema social vai ser tão vasto e tão impactante que vao ter de se tomar medidas.
Durante muitos anos fomos um dos poucos países europeus que não tinha qualquer regulação de terceira geração na Europa. Isto quer dizer o seguinte: estou a alugar uma casa por €1000, amanhã posso colocar no mercado por €3000. A única condição é o mercado responder a ver quem arrende por esse valor. Isso, na maioria dos países europeus não é permitido, ou seja, há um rácio, eu termino o contrato a €1000 e há uma percentagem, definida pelo Estado, sobre o qual eu posso aumentar. 

Mas isso existe noutros países? 
Sim, na maioria, são as políticas mais soft de controlo do mercado de arrendamento. Portugal era dos poucos países europeus que não tinha nada disso. 

Mas ainda temos rendas congeladas, muito baixas.
Na questão das rendas, nós temos um mercado muito liberalizado, só não estão os 120 mil contratos de arrendamento anteriores a 1991. Essas rendas não são congeladas, são controladas, que é muito diferente. Essas pessoas têm aumentos de rendas regulados.

Então agora já temos algum controlo sobre as rendas? 
Agora tem, é uma das leis do Mais Habitação, creio que ainda não foi revogada, mas poderá ser. O problema é que continua a desregulação porque não há nenhuma entidade que fiscalize. Os inquilinos estão continuamente com o coração nas mãos na altura das renovações de contrato, porque o senhorio continua a poder ir ao mercado, ver como é que param as coisas e se alguém oferecer mais. Isto cria uma pressão enorme nas pessoas. A nossa sociedade não está preparada para nós sermos nómadas, basta termos crianças, não podemos estar sempre a mudar de casa, de escola e de amizades. Não queremos isso para a nossa vida.
Nos países em que o mercado de arrendamento está controlado, isto não acontece. Havendo controlo de rendas, o inquilino já sabe qual é a expectativa do senhorio. Mas aqui o que vemos no final dos contratos é gula.

Tiago Mota Saraiva

Esta história do Estado dar uma garantia aos mais jovens para os empréstimos imobiliários à banca… não é um apoio aos mais jovens, é um apoio ao banco. E como volto a frisar, o crédito imobiliário para habitação própria é dos negócios mais seguros para a banca. Se a pessoa entrar em incumprimento, o banco não perde, fica com o imóvel.

Quem é senhorio queixa-se muito que tem receio que o inquilino deixe de pagar e não tem ferramentas para o retirar da casa.
Mas têm, agora é muito rápido. 

A ideia é que é muito lenta e que pode destruir a casa. 
Isso já pode ser verdade, é difícil ir a tribunal e ser ressarcido, mas trata-se de um problema do nosso sistema judicial, mas também por isso as cauções são cada vez maiores. O risco é perder 2-3 meses de de renda. Com 3 meses de atraso já pode apresentar queixa no balcão do arrendamento e o processo é muito célere para despejo. 

E como é que se poderia regulamentar as rendas? 
O processo poderia ser feito de uma forma relativamente célere, por localização, por tipologia e por estado de conservação, o que seria uma renda justa para os fogos. A partir daí, os valores que podem estar contratualizados acima seriam tributados de forma dura como são tributados os excessos. E dessa tributação construíam-se políticas sociais de apoio às pessoas que não conseguem pagar as casas. Isso era o sistema que nós devíamos criar de proteção da maioria das pessoas, para que se conseguisse, de facto, garantir o direito à Habitação, previsto na nossa Constituição e continua a não estar garantida. E ainda assim não é tão duro como o sistema dos Países Baixos que tem crime de especulação sobre rendas demasiado altas. 
Nos Países Baixos há um conjunto de casas que estão no mercado livre, que tem a ver com a qualidade da casa, mas a maioria das casas tem rendas reguladas e cá em Portugal também se devia ter. 

Há pouco falou em Barcelona, é um exemplo para si?
Sim, não só numa lógica de controlo de rendas, não só numa lógica de controlo do AL, mas também num processo de construção cooperativa que tem tido uma robustez e um apoio público e priorização pública que não tem par nos últimos anos. 
A construção de habitação cooperativa tem a grande vantagem de ser habitação privada sem fins especulativos, ou seja, a maioria das pessoas quer ir para lá viver, investe as suas poupanças, reabilita património público, e fica com o direito de uso durante 90 anos, segundo a lei.
Só para ter uma ideia, como estão lá as coisas, neste momento, seria impossível a um autarca de centro-direita ou direita dizer o que Carlos Moedas diz sobre AL. Perdia as eleições, não tinha votos, mas nós ainda andamos aqui com uma macacada ambígua sobre o que fazer, a baralhar os conceitos quando há coisas que são factos.

Estes problemas não são recentes.
Claro que não, Fernando Medina também facilitou muitos destes negócios, não o estou a isentar de problemas. Mas durante a campanha eleitoral Carlos Moedas falou muito da cidade dos 15 minutos, da proximidade, mas agora deixou de o fazer. E o Partido Socialista, com a atual maioria da Câmara de Lisboa, aprovou a construção de um novo hotel no hospital do Desterro. Isso contraria a ideia da cidade de 15 minutos.
A cidade 15 minutos tem um princípio básico, do ponto de vista urbanístico, que é perceber o que a zona precisa num raio de 15 minutos a pé ou de bicicleta, e certamente a zona em torno dos Anjos, que inclui o hospital do Desterro, não precisa mais hotéis. Aqui são precisos espaços culturais, para teatros, bibliotecas, habitação…
Se calhar ainda há capacidade para fazer hotéis na freguesia de Santa Clara, numa  freguesia a Norte de Lisboa, e isso permitia-nos também fazer com que o turismo não se concentrasse tanto no território. 

Ainda há o problema das casas vazias, não é?
Sim, esse é um problema gravíssimo. O censos de 2021 fez isso, deu-nos números alucinantes que são esses: 12% Portugal inteiro. Em Lisboa são 15%, e a freguesia que tem mais casas vazias, 3800, é Arroios. 

Não são casas devolutas, são casas vazias?
Casas vazias podem ser várias coisas, até podem estar à venda. Portanto, não são necessariamente devolutas e muitas delas estão à espera para revendas. 

Na Dinamarca, a lei permite que o Estado requisite casas vazias para pô-las no mercado de arrendamento…
Portugal está no topo dos países com mais casas vazias. O Reino Unido tem 1% de casas vazias, o que é natural, são casas em transição, Suíça tem 2%, os Países Baixos têm 4%. Neste último, tiveram o movimento Okupa durante muitos anos fez pressão sobre casas vazias, e aí o senhorio com medo que a casa pudesse ser ocupada, punha lá pessoas a habitá-las. A Suíça é um caso à parte, é outra mentalidade, as pessoas acham imoral ter casas e que fiquem vazias. Num território em que há carências habitacionais como em Portugal, o que o Estado devia fazer era identificar casas vazias durante um tempo, e fazia-se com que houvesse uma pressão sobre os proprietários para que tivessem suas casas ocupadas, se não entrassem no mercado de arrendamento deviam ser particularmente oneradas, para ser incomportável para os senhorios terem casas vazias. E essa receita do Estado devia ser reequacionada em sistemas de apoios sociais para as áreas da habitação. Eu acho que era uma solução inevitável. 

Tiago Mota Saraiva

Nos Países Baixos há crime de especulação sobre rendas demasiado altas. Neste país, a maioria das casas tem renda regulada e cá em Portugal também se devia ter. 

Penso que o programa Mais Habitação [do anterior governo] referiu essa hipótese, mas deu muito brado…
Foi muito mal apresentado, o problema não é a família que tem um apartamento à espera da filha que está a fazer o Erasmus. Isso são casas dispersas, não interessa nada. Quando me refiro às casas de Arroios não são casas dispersas, são de fundos imobiliários, ou de Vistos Gold, que compraram e não fazem mais nada porque sabem que a habitação se valoriza sem sequer fazerem obras, portanto é só esperar. Isso não deve ser legítimo. 
O Mais Habitação teve vários problemas, não se focou em operar sobre agrande estrutura económica, os fundos imobiliários que tem muito mais do que 10-15 fogos vazios. Esse património devia ser imediatamente mobilizado.

Há ainda as casas e prédios que são herança e estão no tribunal e não há meio de terem resolução.
Esse é outro património que também se devia ver como é podia ser mobilizado, são processos que estão em tribunal há longos anos. Entre decisões, era muito interessante, por exemplo, o Estado assumir aquele património, arrendava, e esse valor se calhar até ficava para renda de quem depois, em tribunal, tivesse direito à propriedade. Mas, entretanto, tinha utilidade. Ou seja, o Estado podia-se assumir como ator naquele território e para aqueles fogos e a renda até podia não ficar para o Estado, o que lhe devia interessar era fazer utilização pública daquele património. Até os próprios proprietários podiam ver com algum interesse.

Mas a ideia com que se ficou não foi bem essa.
Foi-se buscar um exemplo extremo, é claro que a pessoa que conseguiu comprar um apartamento em Odivelas para a filha que está a fazer Erasmus não se deve sentir pressionada. Esse é um exemplo extremo, não tem interesse, o que tem interesse são quem acumula muitos fogos.
Por exemplo, Berlim está num processo muito interessante. Houve uma iniciativa pública de referendar a municipalização – que venceu – de todas as estruturas de propriedade que tinham mais de 3000 fogos.
O que os berlinenses disseram é que não queriam grandes estruturas a dominar o imobiliário da cidade. Nós cá temos processos de acumulação muito perigosos. O Largo do Intendente, por exemplo, neste momento é dominado por 3 proprietários
, e isso é um problema para a cidade. E este processo de concentração de poder que decorre sempre do mercado livre: quem tem mais capital começa a conseguir adquirir mais e mais. Foi esse processo de acumulação que se quis rebater, não foi colocar em causa a propriedade daquela pessoa que tem a casa à espera da filha.

Na altura houve quem defendesse que o Estado devia dar o exemplo, e recuperar os seus imóveis, em vez da requisição de casas vazias dos privados, e que o Estado e as autarquias não têm noção dos imóveis que possuem. É assim?
Têm ideia sim, mas há sempre a ideia que não. Têm e a verdade é que o Estado já não tem tanta propriedade como se diz que tem. E eu falo com conhecimento de causa, como no nosso ateliê de arquitetura, ganhou um concurso para a inventariação que deu depois origem à legislação e à lista de património público num determinado território nacional. Outras equipas ganharam o concurso para outros territórios nacionais. E o que se percebeu é que o Estado já não tem propriedade, que lhe permita –  construindo tudo – dar resposta às carências que nós temos, por isso é importante frisar isto. O Estado já vendeu muita coisa ao longo dos anos, o que o Estado tem é de voltar a comprar. O que está a acontecer nalguns casos. Muitas das soluções de respostas do PRR são compras de edificado. 

Outra confusão que se faz é entre habitação pública e habitação social. Qual é a diferença? 
Eu evito sempre a comparação, por exemplo, diz sempre que Portugal tem 2% de habitação social e pública, dizendo social e pública. Quando se fala no ‘social housing’ europeu, identifica-se como habitação com apoio público, portanto, quando se diz que a Holanda tem 30% de habitação social/’social housing’, está-se a falar de habitação cooperativa que tem apoio público, mas é privado, porque é das cooperativas. O nosso conceito embrulha-se um bocadinho quando se faz a comparação com os conceitos de ‘social housing’ europeus. 

Houve um artigo interessante na revista The Economist sobre a tal ‘social housing’ em Viena…
É cooperativa, é o Red Vienna. Essa habitação tem apoios públicos, não é inteiramente pública, mas tem renda controlada e Viena é um caso absolutamente extraordinário de produção de habitação de renda acessível. Eu acho que a habitação social é um termo tramado porque toda a habitação é social. 

Mas quando se fala de habitação social dá ideia que são casas para populações muito pobres, com uma construção feia e muito má.
Portugal tem um problema porque durante muito tempo só construímos para os mais pobres dos pobres, agora é que estamos a ter algumas iniciativas de construção de habitação de renda acessível, seja dos municípios, seja a partir do IHRU, mas ainda assim é-nos muito difícil chegar aos 5% que foram prometidos por António Costa há uns anos largos.
Na verdade, o problema da habitação social não tem uma resposta única. Quem disser ‘isto tem de fazer por esta via’,  está a mentir. Para isto ser resolvido durante o nosso período de vida, nós temos de apostar em vários cavalos e começar a resolver em vários tabuleiros. 
É verdade que temos que construir mais habitação pública, isso ainda assim está a ser feito, num processo robusto de construção de habitação pública, que espero que não seja travado. As indicações que eu tenho é que, ao contrário do que é dito na comunicação social, muitas das coisas ficaram a aboborar agora por falta de decisões deste Governo. Portanto, eu tenho medo que isso depois não tenha reflexo em 2026.
É preciso continuar esta linha de habitação pública, mas é preciso construir sobretudo um mercado de habitação de produção privada, não especulativo. Quando eu digo isto é: as cooperativas têm que ter um papel robusto de resposta, e as cooperativas somos nós, ou seja um conjunto de pessoas que têm algumas poupança e que está disponível para investir na sua casa e o investimento nas cooperativas é um investimento seguro. 

Fiquei espantada com os números desse artigo, dizem que 60% da população de Viena – 2 milhões – vive em social housing. O custo médio de um T2 é €975!
E eles têm outros rendimentos, muito mais elevados.

“Cerca de 80% da população de Viena é elegível para habitação social, devido aos limites de renda elevados, ordenado líquido 57.600€, para uma pessoa, ou €100 mil para um casal com 2 crianças”. 
Vou fazer as contas a 12 meses para termos uma ideia do salário mensal… €4800 por mês para uma pessoa, um casal é €8300. É outro patamar.

Tiago Mota Saraiva. Jardins do Bombardo, Lisboa

“Todos os exemplos que temos e que é o mercado totalmente desregulado só provoca mais dor e mais problemas no campo da habitação.

O que foi o SAAL e será que poderia haver um SAAL moderno?
O SAAL foi um processo lindo, uma resposta pública de habitação pública muito robusta. Na verdade, o SAAL surge estava já a ser trabalhado antes do 25 de Abril, muito em torno das equipas de arquitetos e urbanistas do LNEC e do GTH (gabinete técnico de habitação) da Câmara de Lisboa, que tinham muito conhecimento. Há a Revolução a 25 de Abril de 74 e a abertura do SAAL acontece logo em Agosto. É uma política pública de habitação que até é reconhecida como de referência internacionalmente, que durou apenas um ano e meio.
Foi muito criticada logo a seguir ao 25 de Novembro mas construiu de facto coisas muito interessantes. E baseava-se numa ideia que eu acho que a ideia fundamental que nós devemos ter, e que o arquiteto Nuno Portas, que logo a seguir ao 25 de abril foi nomeado Secretário de Estado da Habitação, percebeu muito bem.

Tinha uma tarefa hercúlea pela frente.
Sim, Nuno Portas viu-se confrontado com muitas manifestações em que o tema era habitação, e havia também muitas ocupações por todo o país. E o Nuno Portas faz uma coisa que é muito relevante e interessante que é dizer: ‘Você  organizem-se,e depois nós tratamos das coisas’. Porque para fazer o SAAL era preciso que os moradores se constituíssem em cooperativa, ou associação de moradores, tivessem uma forma legal e aí o Estado dava o apoio técnico para começar o processo, isto é punha os arquitetos e engenheiros no território. E isso é uma formulação que é passar da contestação à construção. Isso é para mim a grande pedra de toque do SAAL. As pessoas que resistem, que combatem, passarem a usar a sua energia para construir uma coisa. E o Estado, que tantas vezes se inscreve como o polícia, o juiz, sobre as associações de moradores e cooperativas, para verificar se fizeram tudo bem à lupa – quando não fazem com a mesma exigência e minúcia aos fundos imobiliários – pôs-se ao lado das pessoas e diz: ‘estamos aqui de braços dados e vamos ver como conseguimos pôr isto de pé’, e essa mudança de paradigma do Estado, ou seja, pôr os técnicos e a instituição no terreno a ajudar para que se construa os processos é fundamental. E sim, poderia haver um SAAL moderno.

“Uma das grandes vantagens do SAAL foi por os técnicos a trabalhar com as pessoas e a apresentar soluções depois aos do topo para decidirem. E isso nós perdemos, mas temos de voltar porque os problemas que temos pela frente são grandes e não são de fácil resolução.”

O problema de habitação em Lisboa tem também impacto noutro setor, o da Educação. Não há residências universitárias nem casas, a preços acessíveis, para os professores deslocados. Houve uma proposta de um partido que ia no sentido de transformar quartéis vazios em residências. Seria uma alternativa?
O alojamento estudantil tem enormíssimas problemáticas. No país inteiro temos 175 mil alunos do Ensino Superior deslocados. Do ponto de vista público de alojamento estudantil temos 15 mil camas, e temos a perspetiva agora com o PRR subir até 27 mil. Insuficiente claramente. Mas apontar uma única solução é uma coisa tecnicamente pouco sustentada. 
Temos de ver onde estão os quartéis; que é que faz sentido ali; que respostas as populações daquela zona pedem e precisam. Será alojamento estudantil, habitação…? Isso é a cidade de 15 minutos. Aí é que os técnicos têm um papel importante. É uma doença infantil das pessoas com formação jurídica, acham que fazem uma Lei, de cima. Não, temos é de ver o que as pessoas que ali vivem dizem. A partir daí é que se começa a construir as soluções.

A conversa já vai longa, e este é um tema complexo, com várias camadas e com mensagens distorcidas, quer deixar uma mensagem final?
Gostava só de vincar um bocadinho algumas ideias: ainda há um discurso muito ideológico, sobretudo liberal, sobre as vantagens do mercado livre, que se consegue regular, e que o direito de propriedade é o primeiro direito de uma sociedade democrática. Estes dois conceitos estão longe de ser verdadeiros do ponto de vista científico.
Todos os exemplos que temos e que é o mercado totalmente desregulado só provoca mais dor e mais problemas no campo da habitação.
E é importante falar-se mais de habitação do ponto de vista do que é enquanto direito social inalienável: todas as pessoas precisam de casa e isso é um direito que deve prevalecer perante todos os outros. E nós não estamos a conseguir garantir esse direito.
Outro erro é acharmos que o imobiliário vai resolver problemas da habitação. Não vai, o imobiliário constrói casas para construir mais valias financeiras. 
Outro erro é acharmos que as soluções de problemas resolvem lá em cima para baixo, sempre desvalorizando a perspetiva técnica – seja da arquitetura, da questão urbana, da cidade – seja das pessoas.

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