Um jornalista e terapeuta holístico brasileiro, José Joacir dos Santos, conta esta história: uma amiga sua, bem sucedida, solitária e na faixa dos 40, foi a uma vidente para saber se encontraria o amor da sua vida. A vidente descreveu em pormenor um homem que ela encontraria em breve. Assim aconteceu: ela conheceu o tal homem, mas foi descobrindo que era preguiçoso, mentiroso, desonesto, e além de todas estas qualidades, ainda tinha filhos de outras mulheres. Um belo dia, o namorado pediu a separação, ficou com metade de tudo o que ela tinha, e disse adeusinho. Desesperada, a amiga voltou à vidente para lhe cobrar o malogro do namoro. A vidente encolheu os ombros, e explicou: “Eu não lhe disse que ele era do bem. Só respondi ao que me perguntou.”
O sonho de encontrar a nossa alma gémea confunde-se com o sonho da perfeição, com a ideia de que em algum lado do universo há alguém que seja o nosso espelho, que nos complete tão perfeitamente que todas as nossas angústias, dramas e carências se hão-de desvanecer. Num dos seus textos mais poéticos, precisamente sobre almas gémeas, Miguel Esteves Cardoso afirma que ‘uma alma gémea é a prova de que não estamos sozinhos.’ Voltar ao nosso ‘outro’ não é apenas encontrar alguém que nos ame: é completarmo-nos de uma maneira quase cósmica. “Como é que se reconhece uma alma gémea? No abraço. Quando duas almas gémeas se abraçam, sente-se o alívio imenso de não ter de viver. Não há necessidade, nem desejo, nem pensamento. A sensação é de sermos uma alma no ar que encontrou a sua casa, que voltou finalmente ao seu lugar, como se o outro corpo fosse o nosso que perdêramos desde a nascença.”
O amor à nossa espera
Curiosamente, esta descrição espelha os vários mitos de alma gémea, tão velhos como a história da Humanidade. Há anos que a solidão humana procura formas de nos garantir que sim, que temos um amor à nossa espera neste planeta, é uma nostalgia que parece nascer connosco. Segundo a mitologia grega, há muitos milénios atrás o Olimpo era habitado por seres com quatro braços, quatro pernas, duas cabeças e dois troncos, mas apenas uma só alma. Os outros deuses, com inveja desta harmonia total, mandaram trovões que separaram os seres em dois, condenando-os a uma busca da outra metade.
Segundo a cabala, antes de virem para este planeta os aspectos masculinos e femininos da alma eram unido, e quando vêm a este mundo, não necessariamente ao mesmo tempo, separam-se e procuram-se. A astrologia kármica partilha este ponto de vista, juntando elementos astrais que permitem, segundo os seus seguidores, saber onde estávamos e quem amámos noutras encarnações.
Uma das mais famosas praticantes é a brasileira Dulce Regina, que partiu ela própria da busca da alma gémea para guiar outras pessoas nessa procura. Já com vários livros publicados sobre o assunto, Dulce é bem conhecida em Portugal, e encontrámo-la por cá exactamente nesta altura. Aproveitámos a sua simpatia para lhe expor todas as nossas dúvidas mais básicas sobre a forma como encontramos (ou não) o amor da nossa vida. Quem conhece a teoria kármica já está está familiarizado, quem tem dificuldade em aceitá-la pode ver as explicações de Dulce como mito, metáfora ou conto de fadas. De qualquer maneira, é sempre bom saber que não estamos sozinhas na nossa busca…
Não te conheço de outra vida?
Começámos pela pergunta mais básica: o que é uma alma gémea? Alguém igual a mim? “A essência é a mesma. O que aconteceu foi isto: o espírito é um e desmembrou. A diferença é que, como nas plantas, foi-se subdividindo. Então, cada um de nós tem uma única alma gémea matriz, mas temos várias almas companheiras.”
Imaginemos que sou atraída por alguém. Isso quer dizer que essa pessoa é a minha alma gémea? “Não necessariamente. Aliás, as almas gémeas nem sempre se reconhecem automaticamente. Num primeiro momento, a pessoa pode nem se aperceber disso.” Então como é que eu sei que é ele? E não se pode confundir obsessão com alma gémea? “Sim, mas isso é outro tipo de karma, o da posse e de poder. Se você passar 10 anos sem ver a pessoa, se não é tua alma gémea você nem lembra mais. Se for, você pensa nela, sonha com ela, não consegue esquecer. Claro que como em qualquer relação os conflitos também existem, mas com a sua alma gémea a sensação principal é de paz, de entrosamento e de afinidade, porque ela faz parte da sua essência.”
E sim, é possível passarmos por ele e não o reconhecermos. “Pode acontecer que pessoas se conhecem aos 15 anos, depois se perdem, casam com outras pessoas, e 10 ou 20 anos depois voltam a encontrar-se. Pode acontecer que a pessoa não está preparada, ou que tem outros karmas a cumprir. Às vezes, estão em processos diferentes de evolução, e por causa disso um não consegue imediatamente perceber o outro.”
Mas animem-se, românticas: a tendência é encontrar a metade que nos falta, mesmo que eu esteja em Cascais e a minha alma gémea na Índia. “Isso pode acontecer, mas não é comum. No momento em que essa ligação entre duas almas está sendo astrologicamente cobrada, a força é tão grande que vai atraí-las uma para a outra. Claro que às vezes essas ocasiões se perdem, por isso é que é importante ter consciência desse processo.”
E olhos bem abertos, porque o amor da vossa vida tende a estar onde menos se espera. “Geralmente até, a sua alma gémea é muito diferente de você. Podem ser diferenças de raça, de idade, de religião. Acontece muito. Porque o objectivo não é o corpo físico, é o reconhecimento da essência do outro independente do que ele é exteriormente.” Isso é um teste? “É um teste, lógico. Porque se tudo fosse fácil, você não aprendia nada.”
Suponhamos que encontro a minha alma gémea e me realizo com ela. E depois, o que é que acontece? “Passam para um plano mais elevado até ao momento em que há um equilibrio perfeito entre o masculino e o feminino.” E se a deixamos escapar? “Não nos esquecemos dela, sentimos saudades, nostalgia. Essa sensação de falta também é o que se sente quando a alma gémea não está na Terra, está à sua espera num plano espiritual mais elevado. Por outro lado, é sinal que já vivemos essa experiência de amor.”
Quando se desviam
Ai meu Deus. Isso quer dizer que posso estar eu aqui e ele andar a passear no espaço astral? Ou pior: encontro-o finalmente, e ele está casado com outra? Dulce ri. “Pois pode. A ligação de alma gémea não é necessariamente romântica, é mais espiritual e pode manter-se espiritual, porque as pessoas têm situações diferentes para resolver.”
Aliás, fiquem sabendo que normalmente não casamos com a nossa alma gémea. “Normalmente, os casamentos são relacionamentos kármicos, pendências de outras relações onde você reencontra aquele espírito para tentar melhorar. Com uma alma gémea, é um amor incondicional, independentemente de ela estar comigo ou não. Uma coisa é uma ligação kármica, outra uma ligação de alma gémea, que nunca é de posse, a gente quer o melhor para o outro mesmo que ele não esteja connosco.”
Hum. Não sei se sou assim tão abnegada. E de qualquer maneira, também não é fácil ficar junto do seu amor. “Não é, não. Tudo pode acontecer. A energia negativa muitas vezes impede, outras pessoas metem-se no caminho, mas senão, seria tudo muito fácil. Essas dúvidas são necessárias, até porque você pode estar aqui noutra missão que não a de encontrar aquela pessoa. Ou então, as pessoas podem-se completar em termos de trabalho, realizando-se na mesma profissão.” Conta o exemplo de dois médicos que trabalham juntos. Ele está casado com outra pessoa, ela permanece solteira.
Mas não há sempre uma atracção? E não há sempre a sensação de que falta qualquer coisa? “Claro que sim. Claro que sim. Dá uma grande nostalgia.” E por que é que ele não se separa? Ri. “Fácil de falar… Ela entende isso como uma missão espiritual com ele. Mas pode chegar o momento em que decida fazer a sua vida com outra pessoa, uma alma companheira, que pode dar um relacionamento mais leve.”
Dulce deixa um aviso: é preciso antes de mais a pessoa conhecer-se a si própria. “Porque só depois da pessoa estar inteira consigo própria é que ela pode estar inteira com o outro. Então, não podemos passar a vida nessa busca obsessiva pela alma gémea. A pessoa deve evoluir individualmente, trabalhar a autoestima, aprender a estar bem consigo mesma. Porque homem nenhum vai-te fazer feliz se você não estiver bem. É óbvio que toda a gente busca essa outra metade. Mas encontrar a alma gémea não deve ser seu objectivo final. Seu objectivo final é estar inteira com você.”
Ainda bem que não existem
Então e quando as almas gémeas se transviam? Os terapeutas Pedro Frazão e Margarida Vieitez, do Espaço Família, dão aconselhamento a casais em dificuldades de percurso e têm uma única certeza: acreditar em alma gémea pode levar a que… não se encontre a alma gémea. “A expectativa que se gera com a ideia de que se vai encontrar essa alma gémea leva a que se viva com frustrações sucessivas”, explica Margarida Vieitez. “As nossas filhas ainda crescem embaladas com contos de fadas. Isso não é mau, mau é quando não conseguimos crescer para além disso, não separamos a ficção da realidade.”
Claro que, historicamente, sempre fomos habituadas a pensar o amor romântico desta maneira, e não é fácil libertarmo-nos de um mito colectivo. “Claro que depois, à medida que a pessoa vai ensaiando as primeiras relações, umas vezes torna-se mais realista, outras vezes não”, nota Pedro Frazão. “Mas não estamos a tirar o romantismo da coisa. Não é que de um lado estejam os realistas e de outro os românticos, mas uma questão de as pessoas se aprenderem umas às outras.”
Parte do pressuposto das almas gémeas vem da ideia de que o amor não pode ter desencontros: “E isso é perfeitamente irrealista: essa ideia mágica de que se vai encontrar uma pessoa com quem vou ter os máximos pontos de contatco, que vai ser o meu espelho, que vai adivinhar todos os meus pensamentos, isso não existe.”
“E ainda bem que não existe”, lembra Margarida, “porque cada um de nós é único e essa é a nossa beleza. Mas é uma ilusão que as pessoas continuam a alimentar, porque lhes tira a responsabilidade de serem elas próprias a encontrarem a sua felicidade.”
A doce música do acaso
Há quem acredite na beleza do destino: aqui, acredita-se na beleza do acaso.”Temos de pensar que as pessoas se conhecem por acaso”, afirma Pedro. “Vamos encontrando pessoas de quem gostamos mais e menos, vamos contruindo uma relação com elas. E pensar nisto em termos de acaso não tira beleza a uma história de amor.”
Então se somos nós que escolhemos, nós e o acaso, como é que escolhemos? Tendemos a eleger pessoas iguais a nós? “Nem sempre”, nota Margarida. “O que é comum é a pessoa procurar outra que responda às suas necessidades. Se calhar um baixinho é atraído por pessoas altas, uma pessoa mais enervada por uma pessoa mais calma. E muitas vezes, é a diferença no outro que nos atrai!”
“Continuamos a não saber, e ainda bem que não sabemos, por que é que nos sentimos atraídos por determinadas pessoas”, nota Pedro.
“Há uma coisa engraçada: racionalmente, e à posteriori, percebemos que temos, não gostos, mas vivências similares”, acrescenta Margarida. “Vivemos acontecimentos semelhantes, e isso gera afinidades sem que as próprias pessoas saibam disso. É como se tivessemos uma máscara protectora, e por trás dela estivessem todas as nossas vivências, que nós inconscientemente conseguimos projectar. Há pessoas que intuitivamente se percebem disso. E o processo de descoberta começa a partir do momento em que as pessoas se sentem atraídas. Claro que pode não passar disso.”
“Muitas vezes, as pessoas são confrontadas com realidades que se assemelham aos modelos de conjugalidade que têm, das famílias de onde vieram”, lembra Pedro. “Mas isso também vai sendo negociado. Há uma atracção, mas aquilo que determina o sucesso de uma relação é a capacidade de construir uma intimidade com outra pessoa.”
Quer dizer que tendemos a repetir os modelos familiares que conhecemos em criança?
“Acho que sim,” afirma Margarida. “Uma pessoa que não recebeu carinho e segurança, tem tendência a ligar-se obsessivamente a outra.” Pedro discorda: “Desconfio um bocadinho dessas explicações. Há modelos de relação que vão muito para lá disto.”
Margarida lembra “Há pessoas filhas de pais violentos, que têm companheiros que as agridem, e actuam exactamente como as suas mães.”
“Claro que às vezes existe essa trans-geracionalidade”, diz Pedro. “Mas se forem capazes de reflectir sobre o que é que é para elas gostar de uma pessoa, podem começar a compreender como é que essas escolhas são feitas à luz da sua história. Se a pessoa mesmo assim não sai dessa relação, temos de pensar que necessidades é que essa relação lhe satisfaz.” É que tem de haver um sentido para duas pessoas estarem juntas, acrescenta Margarida, porque de outra maneira aquela relação é um equívoco. “E vemos tantas aqui que são um equívoco… “, lembra Pedro. “Há relações conturbadas desde o namoro. Há pessoas que pensam: ‘Ah, a gente dá-se mal mas depois do casamento as coisas vão melhorar.’ Porquê? O casamento não é uma magia…”
Como amar criativamente
Então e quando as almas gémeas se ‘des-gémeam’ e a relação corre mal? “Se uma das pessoas diz, ‘eu já não o amo’, não há nada a fazer”, afirma Pedro. “Mas se ambas querem ficar uma com a outra, aí sim, há que trabalhar.”
Os 40 anos são tradicionalmente a idade do ‘agora ou nunca’, mas, como lembra Pedro,
“o agora ou nunca pode ser óptimo. É sempre bom reflectir sobre as coisas.” Por outro lado, muita gente continua a manter casamentos de fachada por medo da solidão e do desconhecido. E quando os laços se quebram, a procura da ‘alma gémea’ recomeça…
“Nós aqui na terapia não explicamos às pessoas por que é que gostam ou não gostam, mas é possível ajudar as pessoas a perceber por que é que aquela relação não correu bem e se querem refazê-la ou partir para outra”, afirma Pedro. “As pessoas têm dificuldade em aceitar que as coisas não estão escritas. Mas para se amar criativamente, nunca se pode ter a certeza de que se tem alguém. É muito bom haver dúvidas. Por isso é que não existem, nem nunca poderiam existir, almas gémeas. Isso seria uma desresponsabilização. Mas isso não tira o brilho ao amor; se as coisas não estão predeterminadas, a nossa liberdade tem imenso encanto.”
Mas a verdade é que a maioria de nós mortais tem necessidade de acreditar no destino. “Se lhes dissessem que não existiam almas gémeas, muitas pessoas ficariam desiludidas”, concorda Margarida. “Mas pdemos pensar que existem várias almas gémeas para cada um de nós…” (ri) Ou então, como nos ensinou a Dulce, que em falhando a alma gémea, temos sempre uma alma companheira para nos amparar…
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