Foto Pexels/Zaechka

Que diria se soubesse que o seu trabalho estava a matá-la? Esta é a frase que resume ‘O monge que vendeu o seu Ferrari’. Baseado na vida do seu autor Robin Sharma, um advogado que aos 25 anos decidiu largar tudo e tornar-se ‘guru’ de uma nova geração sedenta de outra vida, o livro tornou-se um bestseller internacional, graças aos seus ensinamentos baseados na filosofia oriental. A sua história não podia ser mais simples: um advogado de sucesso decide largar tudo e vender o que tem (inclusive o tal Ferrari) para partir em direção ao oriente e aprender como se leva uma vida mais espiritual.

Previsivelmente, foi um sucesso.

Bem, voltemos ao princípio. Se alguém vos dissesse ‘O seu trabalho está a matá-la’, que faria? Se calhar diríamos, ‘Tenho uma família para sustentar, e uma crise mundial não é a melhor altura para mudar de vida’. Mas na verdade, uma vida desgastante e emocionalmente nada compensadora era e é a realidade para muitas pessoas. Nós que não temos Ferraris para sacrificar nem queremos tornar-nos monges pensamos muitas vezes que se calhar gostávamos de ter uma vida mais voltada para aquilo que importa.

Problema: ensinaram-nos que temos que parecer giras e bem vestidas, temos que manter o estatuto, temos de aparecer no Instagram, temos de nos ‘vender’ dia a dia.

Solução: uma das coisas que a pandemia nos ensinou (lembra-se?) foi que toda esta vida de stresse talvez seja, como dizem os americanos, tão ano passado…

A arte de não ser banal

Estou ao telefone com uma das minhas melhores amigas, que não sendo CEO tinha um cargo de responsabilidade numa empresa, do qual se despediu há um ano para assumir outro do qual se arrependeu quase imediatamente devido a uma filosofia de gestão de expectativas que ela acha fora de moda. “Não é assim que se gerem pessoas”, queixa-se. “A angústia e a pressão não são nem nunca foram bons conselheiros. Tenho tantas saudades de uma vida mais banal…”

A expressão ficou comigo muito depois de eu desligar o telemóvel. O que é que queremos na verdade, quando dizemos que queremos uma vida mais ‘banal’? De que é feita esta banalidade que desejamos?

Vou ao Zoom chamar o meu amigo e guru Vítor Rodrigues, porque preciso de alguém fora da caixa que me oriente no limiar de um novo mundo. Autor de ‘O Livro da Apreciação’ ou ‘Tranquila-mente’ (entre outros), é o mais parecido com o monge do Ferrari que eu conheço (enfim, sem o Ferrari). Apanho-o no seu Alentejo. Como de costume, dou-lhe o mote e ele faz o trabalho de casa por mim. “Segundo o dicionário Webster, ‘banalidade’ significa falta de frescura ou de originalidade”, começa. “Nessa aceção, de facto a banalidade é uma coisa repetitiva, chata, sensaborona. No entanto, conheço muitas pessoas que conseguem extrair da banalidade essa originalidade, frescura e novidade que teoricamente lhe faltam.”

A banalidade engana, é isso? “Precisamente. A arte de não ser banal tem muitas vezes pouco a ver com dar nas vistas, andar nas bocas do mundo, estar nas luzes da ribalta, ter milhares de likes, mas passa por reparar em coisas milagrosas que temos à frente dos narizes o dia todo, como o meu gato a dar-me cabeçadas ou as cores inacreditáveis dos pássaros que me rodeiam o dia todo.”

As coisas simples que nos ajudam

O que eu já aprendi com o meu ‘monge’: para estar verdadeiramente vivo, é preciso reparar nas pequenas coisas que estão a passar-nos ao lado. Ok, mas isso não é um bocado lugar-comum? Parece filosofia de Instagram, e francamente já não se aguenta. Muita gente já me revira os olhos quando eu falo de uma vida mais feliz e mais ‘natural’.

“Ok, então toma lá um exemplo mais tecnológico”, continua o Vítor. “Por exemplo, nós neste momento estamos aqui no zoom. Muita gente nem se apercebe na maravilha que isto é. Se estivéssemos numa situação destas há 200 anos, terias de me mandar um mensageiro com a mensagem, tinha de vir um tipo a cavalo, tinha de mudar de cavalo a meio do caminho, entregava-me a mensagem, isto se não fosse assaltado durante a viagem e lá se ia a mensagem, eu tinha de escrever a resposta, tinha de esperar que houvesse outro tipo com outro cavalo, e etc. Esta entrevista demorava meses a ser feita. E como isto, há milhares de coisas aparentemente simples mas que nos facilitam e alegram a vida.”

A descrente em mim não desarma. Ainda bem que não vendi o meu calhambeque para ir para o Oriente, não me parece que aprendesse grande coisa. Então continuemos advogada do diabo: mas na pandemia não ficámos fartos das ‘coisas simples’?

“Boa pergunta. E é verdade, isso.” Iei! Vocês não querem lá ver que eu (des)converti o monge. “Mas repara numa coisa: neste período de crise mundial que atravessámos e estamos a atravessar, ninguém, nem governantes nem meios de comunicação em geral, sabe ajudar as pessoas a lidar com as consequências, nem protegê-las, nem educá-las, nem encorajá-las, nem ensiná-las como dominar o stresse. Regra geral a única coisa que têm feito é calcar-nos, puxar-nos para baixo, desencorajar-nos, encher-nos de medo e pânico. Além disso, toda a cultura que vivemos até agora, e que ainda estamos a viver, nos puxa para fora, nos incentiva a mostrar-nos, a comparar-nos. Nunca fomos ensinados a viajar por dentro, a refletir, a encontrar as nossas verdades. E no entanto, esse treino de apreciar as pequenas coisas é preciosíssimo e é em si tudo menos banal. Porque é que não interessa à sociedade em que vivemos? Porque uma pessoa satisfeita, feliz com a sua vida, precisa de comprar muito menos. A sociedade de consumo em que vivemos orienta-nos permanentemente para a insatisfação, porque é a insatisfação que nos faz comprar.”

O milagre da consciência

Ok, leva lá a bicicleta. Pronto, o Ferrari. Continuemos com quem está em alta agora. “Quem leva vantagem: aquela pessoa que, em vez de se lamentar dos sonhos e viagens que ficaram por realizar, consegue calçar uns ténis e sair para dar um passeio e reparar no que a rodeia. Não digo que faça aquelas cenas New Age tipo abraçar uma árvore (risos) mas reparar no mundo, nas plantas, nas pessoas. São pequenas coisas? São. Mas são preciosas. E há outra coisa que pouca gente aprecia e que é algo que a própria ciência ainda não sabe explicar bem: o simples facto de estarmos vivos e conscientes.”

A aprendizagem não acabou.  “Outra coisa que não apreciamos devidamente é a cultura. Não temos noção de como nós humanos dependemos disso. É a cultura que nos distingue do nosso lado animal, que o transcende. Ainda temos livros, podemos assistir a peças, há pessoas que visitam museus ou fazem arte caseira. Porque não? Não temos de ser Picassos.”

Lá está: não tenho de ser especial, a minha vida não tem de ser a mil à hora, não tenho de ter um Ferrari. Mas isso não significa que não tenha significado. “Significa exatamente o contrário”, explica Vítor. “Pensamos muitas vezes ‘o que é que eu sou, o que é que estou aqui a fazer’. E claro que cada um de nós se sente especial, porque de facto o somos. Mas ao mesmo tempo que entramos mais dentro de nós, encontramos a nossa individualidade e nos conhecemos melhor, encontramos uma quantidade imensa de fatores comuns com o resto dos humanos, o que nos facilita a ligação com os outros. E neste processo, muitas coisas que achávamos banais e dávamos como adquiridas são de repente mais valorizadas, mais desbanalizadas.”

O grande elemento ‘desbanalizador’

Outra vantagem de apreciar as pequenas coisas é que o stresse é altamente tóxico para o organismo “Quando estamos stressados, a nossa tensão muscular aumenta”, nota Vítor Rodrigues. “E alguns sentimentos, como a revolta, são muitíssimo agressivos para o nosso bem-estar. O que eu aconselho: a aceitação. Não tem de ser um relaxar de passividade e resistência, mas um observar da situação para perceber o que podemos fazer. A ideia é estar relaxado e atento.”

Hahahhaha, agora lembrei-me da minha amiga executiva com duas crianças pequenas aos gritos em casa, e deu-me um ataque de riso maléfico. Sei que o Vítor também é pai, mas não estou a ver a Isis aos gritos pela casa. Como de costume, conta-me uma metáfora-barra-história inspiradora. “Um dia contaram-me a história de um oficial do exército que tinha os dias contados. E de repente, passou a valorizar coisas que até então o incomodavam. Dantes, acordava a meio da noite com o ressonar da mulher. Agora continuava a acordar, mas em vez de lhe dar um safanão pensava ‘que bom, está viva e eu também’. Isto é daquelas histórias lamechas que nos mandam à mistura com fotos de gatinhos, mas é muito verdadeira. Ensinamento: o que eu deixo de ter, às vezes obriga-me a despertar e a apreciar aquilo que tenho. Ok, as crianças podem ser chatas e birrentas. Mas elas estão ali, estão vivas e saudáveis. Apreciemos isso.”

De facto parece que o monge tinha razão: às vezes o trabalho está mesmo, se não a matar-nos, pelo menos a empatar-nos a vida. Ao que parece, a felicidade não vem tanto da idade como daquilo que fazemos do nosso tempo. Segundo um estudo recente publicado na American Psychological Association com pessoas de todo o mundo, as pessoas já reformadas são muito mais felizes do que adultos mais velhos mas que ainda trabalham, e isto tem a ver com a forma como usam o seu tempo: com a família e com atividades que lhes dão mais prazer. https://psycnet.apa.org/

Aprender com a banalidade: é difícil? É. “Mas também temos poucas ou nenhumas ajudas”, defende Vítor. “Andamos exaustos, preocupados com a sobrevivência básica, arrastados para baixo, amedrontados. Somos quase instruídos a reduzir-nos à animalidade, quando precisamos é de perceber porque é que estamos aqui, o que é que dá interesse e sentido à vida, e o que queremos fazer deste planeta. E quando for para sair à rua o que é que vamos querer fazer. Era suposto a sociedade evoluir, mas para isso era preciso tornar as pessoas psicologicamente mais fortes. Não devemos ter medo da banalidade. Devemos extrair-lhe o suco e desbanalizá-la.”

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