Megan Campisi é a autora de “Devoradora de Pecados”, livro das Edições Saída de Emergência que foi recentemente comentado na rubrica “Falar de Livros”. A escritora norte-americana aceitou conversar com a Activa, desvendando um pouco da inspiração que teve para esta obra e dos valores que a movem e quer transparecer através das palavras que passa aos seus leitores.
Quando e o que sentiu quando ouviu falar pela primeira vez do conceito de “devoradora de pecados”?
Foi há uns anos atrás, num romance, e fiquei fascinada. Depressa pesquisei sobre este costume e devorei todos os factos que encontrei. Devorar um pecado é um misterioso ritual funerário que exisita em partes do País de Gales, no qual um pária social comia um pedaço de pão do caixão ou mortalha funerária para absolver os mortos dos seus pecados, em troca de um pequeno pagamento. Depois de comer, acreditava-se que o devorador de pecados carregava os pecados dos mortos na sua própria alma.
No seu livro, como associou alimentos aos pecados? Onde se inspirou?
Nenhuma das combinações de comida que fiz existia no folclore – apenas o pão era tradicionalmente ingerido. Para criar os pares de comida, li livros de receitas da época Tudor, mas também deixei a minha imaginação fazer algum trabalho. Uma das coisas que adoro no folclore é como as histórias mudam à medida que são passadas de geração em geração – alguns significados perdem-se, outros mudam – até que as histórias se tornem uma combinação intrigante de lendas, quebras-cabeça e invenções. Ao combinar alimentos, tentei recriar essas qualidades para o leitor.
Porquê incluir o conceito de “devorador de pecados” num universo inspirado na época Tudor?
A época Tudor parecia ter o contexto perfeito, porque havia uma forte monarca feminina e um conflito histórico entre religiões. Há uma ressonância importante na história entre a rainha Bethany [inspirada em Isabel II] e May [inspirada em Maria Stuart]: uma é uma mulher poderosa e a outra impotente, mas ambas lutam numa sociedade patriarcal. Mas também sabia que precisava de alterar um pouco essa época para que a história que imaginei funcionasse. Devorar pecados não poderia parecer um excêntrico ritual post-mortem (como era historicamente), mas precisava transformar-se numa comunhão profunda e necessária entre duas pessoas que estava intricada no tecido daquela sociedade. A partir daí, uma história alternativa começou a crescer. . . .
Como é escrever do ponto de vista de uma protagonista que não fala diretamente com as outas personagens?
Foi um desafio incrível e muito presente para mim. Ensino teatro físico, que é um ramo da performance que considera a fisicalidade como uma linguagem e privilegia a narrativa visual sobre a verbal. Essa experiência ajudou imenso na descoberta de como comunicar informações entre as personagens e para o leitor.
O que nos é tirado quando comunicamos?
Uma vez, visitei uma comunidade de monges que, como parte dos seus votos, não olhavam as mulheres nos olhos. Embora a falta de contato visual não tivesse a intenção de desumanizar, pareceu-me desumanizante. Foi uma experiência surpreendente, porque fui criada por uma família e uma comunidade que valorizava a minha voz. Ao crescer, não me senti apenas olhada, mas vista. Senti que não era apenas ouvida, mas escutada. Quando essa voz ou individualidade desaparece, mesmo que por um momento, é chocante. Ao escrever “Devoradora de Pecados”, queria evocar o quão devastador é para uma sociedade tirar, sistematicamente, as vozes e a individualidade das pessoas.
Na sua opinião, o que leva os seres humanos a serem tão atraídos para as ideias de pecado e redenção?
Uau, essa é uma pergunta difícil! Já ouvi “humanidade” ser descrita como um relacionamento, ao invés de uma qualidade individual. Isso faz muito sentido para mim. As nossas vidas estão tão entrelaçadas umas nas outras que faz sentido que estejamos interessados na ética dessas relações. Quanto à redenção e à vida após a morte … quanto espaço eu tenho para responder?
Passar os pecados para outra pessoa é um ato de humildade ou de egoiísmo?
Acredito que depende de quem o faz. Certamente que é um ato de extraordinária compaixão para a pessoa que fica com os pecados.
Neste livro, as mulheres surgem em papéis de grandepoder, mas também apresentam grandes fragilidades. É uma forma de mostrar que ainda há muito trabalho a ser feito na questão da luta pela igualdade de género?
O feminismo, no sentido de defender a igualdade entre géneros e sexos, é uma parte muito profunda de quem eu sou, está enraizado em tudo o que escrevo. Embora “Devoradora de Pecados” tenha uma rainha poderosa com a capacidade – em teoria – de transformar radicalmente sociedade patriarcal em que está inserida, a realidade para a maioria das mulheres é diferente. Decidi mapear uma revolução individual na maneira como uma mulher se vê a si própria e à sua situação – um ato aparentemente isolado de rebelião num mundo injusto. O feminismo começa em casa, connosco próprios, e cresce a partir daí. Mesmo que não sejamos rainhas e presidentes, ainda podemos fazer mudanças profundas na forma como vivemos as nossas vidas.
Como se sente por ver o seu livro de estreia publicado em diferentes países?
Sinto-me imensamente honrada. É uma grande alegria estar ligada a leitores de todo o mundo.