Chama-se Aurora e é a grande novidade editorial no mercado português neste início de ano. Helena Magalhães é o rosto desta marca, criada em colaboração com a Cultura Editora, e que tem como objetivo publicar apenas obras assinadas por mulheres, nacionais ou internacionais.
Conversámos com a escritora e a atual curadora criativa e editorial sobre o objetivo da Aurora, os planos que estão a ser traçados, a necessidade de se criar um espaço para se dar unicamente voz a autoras femininas e as dificuldades que as mulheres ainda encontram no mercado literário.
Qual a necessidade de, no mercado editorial nacional, existir uma editora que aposte apenas na produção feminina?
Em primeiro lugar, temos de consciencializar os portugueses para o facto da literatura portuguesa ser ainda maioritariamente assente nos autores homens. São as mulheres quem mais compra livros mas, em Portugal, continua-se a publicar e a valorizar muito mais as vozes dos homens. Basta olhar para as prateleiras da ficção lusófona nas livrarias: a desigualdade está bastante clara. A Aurora nasce exatamente neste contexto. Grande parte do meu trabalho tem sido na luta por abrir o mercado à literatura contemporânea e às novas vozes femininas. Temos grandes escritoras que marcaram as suas épocas e tiveram um papel importante na forma como a voz das mulheres foi revolucionária. Nomes como Florbela Espanca, Maria Judite de Carvalho, Natália Correia ou Maria Teresa Horta lutaram contra os preconceitos da sociedade conservadora portuguesa que remetia (e continua a remeter) a escrita feminina para uma qualidade menor. Chegamos a 2022 e as vozes da geração de hoje continuam a ser silenciadas por uma indústria literária misógina, antiquada e estagnada que nos apelida de literatura inferior, fútil ou para massas. Eu não acredito em literatura inferior. Eu acredito em literatura que toca as pessoas, que emociona, que cativa, que entretém mas também faz pensar, que fomenta o diálogo e cria novos leitores. E acredito no poder transformador da literatura feminina, quer nacional, quer internacional, nos dias de hoje.
Como foi o processo da criação da Aurora?
No ano passado, a Cultura Editora propôs-me criarmos uma editora em conjunto, um projeto que apostasse em escritoras mulheres e em literatura contemporânea, uma vez que tem sido esse o meu foco também no Book Gang (clube do livro digital que tem uma subscrição mensal). Reunimos algumas vezes para discutir ideias e perceber se estávamos todos alinhados. Para mim era importante saber se confiavam na minha visão para o tipo de livros que queria trazer para a Aurora. Fiquei muito entusiasmada quando percebi que estávamos todos em sintonia e numa bonita tarde de agosto, a Aurora nasceu.
Quais serão as suas funções nesta editora?
Eu sou a curadora criativa e editorial. O meu papel é ler, ler, ler, escolher os livros que vamos publicar e descobrir novas autoras (no caso nacional), trabalhando em conjunto com a equipa de design na criação das capas e em todo o processo editorial.
O que mais está a entusiasmar?
O molho de manuscritos que tenho para ler. Numa das reuniões que tivemos no ano passado, levei uma lista de livros internacionais que, na minha visão, fazia sentido tentar trazer para Portugal. Histórias atuais, revolucionárias, novas autoras e outros que vou descobrindo ou me vão recomendando. Todo este processo de negociação é uma coisa nova para mim, então está a ser muito estimulante aprender com a equipa da Cultura. Há uma série de livros que estamos à espera para saber se são nossos e, para mim, é muito emocionante sempre que recebemos um sim. Uma das coisas que mais me tem entusiasmado é quando vou a meio de um manuscrito e sinto que esse é um livro que tem mesmo de ser publicado em Portugal. É inexplicável.
E os maiores desafios deste projeto?
A título pessoal, o meu maior desafio tem sido sair do meu próprio gosto literário. Já li manuscritos internacionais que gostei muito, ainda que tenha percebido logo que seria difícil vendê-los no nosso mercado por todas as suas condicionantes e mesmo por questões mais culturais. Mas acredito que os maiores desafios da Aurora serão equilibrar a publicação internacional com a nacional, descobrir novas vozes portuguesas e ir de encontro às expectativas dos leitores.
Que tipo de livros o público pode esperar encontrar no catálogo?
Não nos vamos focar num único género porque aquilo que procuro são histórias contemporâneas contadas por mulheres. Livros que tenham impacto na vida dos leitores, que fomentem o diálogo, que criem mudanças, que cativem, que sejam atuais, que façam refletir, viajar e sonhar. Acredito que a literatura contemporânea é a única com potencial de criar novos leitores e, uma vez que somos o país da Europa onde menos se lê, sinto que este é o caminho a seguir.
Porquê o nome Aurora?
Porque reflete aquilo que sentíamos quando começámos a discutir este projeto e estávamos entusiasmados com a ideia de criar uma editora feminina e moderna – um novo amanhecer na nossa literatura. Aquele momento em que o sol nasce no horizonte e todos os nossos problemas parece que ficaram para trás porque, subitamente, temos a esperança de que coisas boas virão… isto é a Aurora.
Como está a ser a receção?
A receção foi inacreditável e deixou-me surpresa. No dia em que divulgámos a Aurora e eu publiquei uma fotografia que tinha tirado no escritório da Cultura há umas semanas, não estava à espera do entusiasmo e passa a palavra que se gerou. É gratificante ver como os livros movem as pessoas e pensar no impacto que a leitura pode ter na nossa sociedade se conseguirmos chegar até ela.
Os primeiros passos já estão definidos e podem ser divulgados?
O primeiro livro que a Aurora vai publicar já está em pré-venda e é o best-seller internacional Os Melhores Anos de Kiley Reid. É uma sátira que aborda o feminismo e o racismo que, quando o li, soube logo que tinha de ser nosso e que era um livro pertinente em Portugal, até pelos tempos que vivemos. Vamos publicar de seguida uma nova autora portuguesa com um romance avassalador e temos já livros fabulosos no nosso catálogo que estamos ansiosos por trazer.
Daqui a um ano, que impacto espera que a Aurora já tenha tido?
Espero que a Aurora consiga cativar mais pessoas para a leitura e que tenha sido uma rampa de lançamento para novas autoras portuguesas. Temos uma indústria que ainda obedece a um cânone literário que está longe de ser representativo dos dias de hoje e continuamos muito agarrados a um ideal poético e literário de outros tempos que já não reflete a sociedade de hoje. O meu objetivo é que a Aurora consiga romper um pouco com esta estagnação.
A par da Aurora, mantém um clube de livros, o Book Gang, e é também autora. Como está a conciliar todos estes desafios profissionais?
Quando era adolescente, dizia que a minha profissão de sonho seria escrever e ler. Estava longe de imaginar que iria efetivamente viver da escrita e da leitura e de que o meu hobby se iria tornar numa empresa. O Book Gang continua a trazer todos os meses os melhores livros publicados em Portugal numa subscrição mensal que as pessoas recebem em casa sempre no início do mês. E neste momento, entre trabalhar no Book Gang todos os dias, escolher livros para a Aurora e sentar-me para trabalhar no meu próximo, tem dias que sinto que vou perder a cabeça. Mas depois lembro-me da Helena de quinze anos que passava as noites a ler no quarto e sonhava em escrever. Acho que ela estaria muito orgulhosa de tudo o que conquistámos.