Fotos: João Lemos; Styling: Patrícia Pinto

Sandra Nobre contou-me algumas destas histórias à hora do almoço num restaurante lisboeta. Lembro-me de sentir uma imediata proximidade emocional com as personagens que desfilavam na prosa pausada e bem articulada de Sandra. Podia ficar ali a tarde toda a ouvi-la falar de todo o drama e romance que povoam as suas short stories, ao todo mais de 250. Numa edição dedicada à família, era por isso inevitável convidar Sandra a falar dos livros que faz à medida e que trata “como joias de família”. Como estas, as suas histórias passarão de geração em geração, imortalizadas num texto tão artesanalmente esculpido por ela como é depois encadernado, dourado e lacrado. Começaram por ser histórias de amor encomendadas por ocasião do S. Valentim, mas depressa passaram a narrar toda a dimensão humana, com toda a dor que isso implica, para quem conta e para quem escreve. E também para quem lê, já que Sandra nunca esquece o impacto que as palavras eleitas têm no outro. Isso não é de agora. Contar histórias sempre foi a sua vida e marcou também os “18 anos e 23 dias” da sua carreira de jornalista, quer na rádio, televisão ou imprensa – recorda com especial saudade os anos que colaborou com a revista DNA e Pedro Rolo Duarte. Sandra Nobre é uma espécie de curadora das histórias de família, aplicando-lhes os filtros necessários para que no papel fique para sempre uma boa memória.

Mas as suas histórias não estão confinadas aos livros. Estão dentro de garrafas moldadas por sopro ou bordadas por artesãs minhotas em lenços de namorados, entre muitos outros formatos que encontrou para passar as suas mensagens. Sandra já escreveu para acompanhar um desfile de moda e até já fez a letra de uma canção que serviu de guião para um anúncio. Durante muitos anos, foram também as histórias de 12 mulheres à volta de uma mesa o fio condutor dos pequenos almoços Breakfasts Girls Just Want to Have Fun, que naturalmente evoluíram para um clube privado de networking feminino, o S Supper Club. Sandra é também autora de ‘Os Últimos – Grande Rota do Vale do Côa’, projeto que recupera memórias das gentes raianas ao longo do percurso do rio e das muitas atividades e tradições que se foram perdendo com o tempo. “Foram muitas horas à conversa com aqueles que conheceram e viveram o que agora só está ao nosso alcance em documentos e fotografias ou nas suas lembranças e os seus relatos são o melhor testemunho que pode ficar para as gerações futuras.” Quanto a escrever a sua própria história, Sandra Nobre diz ainda não ter chegado o momento. “Um dia, vai ser interessante… O facto de eu já viver muito da vida dos outros, a par da minha, às vezes sinto como se fosse uma personagem de uma história em que se cruzam tantas histórias pelo meio.”

Como é que começou a escrever histórias de amor?

Nove meses depois de me tornar jornalista freelancer, vejo uma reportagem sobre um fotojornalista português que ganhou um prémio da World Press Photo mas que estava desempregado. [Sandra ganhou ela própria alguns prémios, entre eles o Prémio Maria Lamas.] Pensei ‘qualquer dia estou na mesma, devia ter um negócio, porque isto de estar dependente de revistas e jornais não é futuro’. Vinha aí o Dia dos Namorados e já várias amigas haviam sugerido que escrevesse histórias de amor. Foi aí que decidi criar um flyer a promover essa ideia, sem saber muito bem na altura o que isso implicava. Partilhei no Facebook: nesse primeiro dia tive uma encomenda, no segundo estava a ter uma reunião com uma diretora de um hotel de 5 estrelas que achou que podia ser uma boa ideia para oferecer aos seus clientes, e ao terceiro estava a ser convidada para o Congresso do Amor, a ter lugar na Quinta das Lágrimas, em Coimbra, no Dia dos Namorados. Achei que aquilo tudo era, de repente, uma bola de neve, mas como no dia seguinte me enviaram o cartaz do dito congresso com o meu nome…

Não pôde voltar atrás…

Sim… Entretanto começaram a surgir outras encomendas e comecei a pensar como iria fazer os meus livros, para tentar perceber quais seriam as dificuldades de fazer um exemplar único em gráfica, o tempo que demoraria, os custos… E entretanto descobri um encadernador, daqueles do antigamente, e fui lá falar com ele. Eu não queria fazer livros por fazer livros e, já que me propunha a isso, queria fazer algo especial. Descobri um encadernador, um dourador, tudo ofícios em que já não há muita oferta, sobretudo na zona de Lisboa. Achei que podia transformar os meus livros em joias de família, porque é um bocadinho disso que se trata.

Como assim?

Se há algo que os livros me ensinaram é que, ao contrário do jornalismo, eles duram, hão de ficar na estante de alguém.

Cada história é única e vai passar de avós para filhos para netos. As pessoas acabam por trazer muitos segredos, às vezes também muita dor, porque há muitos lutos, doenças e perdas.

E não é fácil passar para o papel todas essas memórias e vivências. Tenho sempre a preocupação do impacto que isso vai ter na vida das pessoas. Não pode ficar tudo no papel.

E como faz essa gestão, do que fica e não fica no papel?

As pessoas contam-me segredos que não podem ir parar aos livros, porque eles surgem na conversa ou até para eu perceber o contexto. Há pessoas que, no processo, começam a conversar consigo próprias e aí atrevem-se a dizer coisas que nunca disseram na vida, e isso tem de ficar entre quem diz e quem ouve. Quando a história envolve várias pessoas, cada uma vai olhar para ela de uma forma diferente. Para mim, é importante ouvir todas e depois tentar filtrar, pois não quero que se zanguem. O único livro que recusei fazer foi o de uma mãe que queria que fosse eu a contar à filha de 18 anos que tinha sido adotada. Não podia assumir essa responsabilidade. Um livro, por melhor que seja o embrulho, vai ter sempre um impacto na vida de quem o recebe.

Sente essa responsabilidade, de cuidar do outro?

Mesmo no jornalismo sempre me preocupei bastante com o impacto que aquilo que eu escrevo tem nas pessoas que leem. Quando fazia entrevistas de vida – na escola do DNA, as entrevistas chegavam a durar mais de cinco horas – havia muitas  pessoas que me agradeciam, dizendo que nunca se tinham visto daquela forma. Se essas pessoas, sobre as quais já se tinha dito tanto, sentiram tal impacto, imagine quem nunca se viu retratado. Há uma senhora que me liga todos os anos no seu aniversário, para assinalar a data em que recebeu o livro, que diz ter sido o melhor presente da sua vida. E, com mais de 90 anos, continua a acrescentar-lhe páginas de vida.

Há um outro caso, de um filho que encomendou um livro para a mãe, que tinha manifestado vontade de ter a sua história escrita. A senhora gostava muito de ler, mas teve um problema de saúde e deixou de o poder fazer. Era uma pessoa já com alguma idade e eu ia a sua casa reunir com ela. Durante esse processo, conta-me que o marido nunca lhe tinha dito a palavra ‘amo-te’, tinha-a apenas escrito numa fotografia, ainda em miúdos. Eu ouvia muita queixas e há um dia que lhe digo que gostava de falar com o marido. Ele aceitou e questionei-o: ‘como era possível chegar aos 80 anos, depois de tantos anos de casamento com alguém que tinha conhecido aos 14/15 anos, e nunca ter dito a palavrinha mágica que ela tanto queria ouvir?!’. Não costumo mostrar o livro a ninguém antes de estar pronto, mas dessa vez acedi a ler o livro antes de o encadernar. Ela gostou muito, mas eu não lhe li a última página, a qual pedi ao filho para mostrar ao pai e perguntar-lhe se o livro podia acabar assim: ‘Amo-te, a palavra que tu tanto querias ouvir e eu demorei estes anos todos a repetir.’ O filho disse que nunca, até àquele dia, tinha visto o pai chorar.

A Sandra acaba por interferir nas histórias…

No início de todos os meus livros está escrito: ‘Esta é apenas uma versão da história – a minha. Baseado em factos reais, não deixa de ser uma ficção, alguns factos podem não corresponder à realidade ou não coincidir temporalmente.’ Isto porque às vezes as pessoas não dizem as datas certas ou quando envolve muitas pessoas há uns que vêm sempre dizer que não foi bem assim. Então, eu fico com as culpas.

Há uma máxima que uso sempre: temos de usar as palavras com o peso, importância e significado que elas têm.

Poupo nos adjetivos, a não ser que as pessoas os usem e tento sempre escrever, não seguindo o meu estilo de escrita, mas de forma a respeitar a outra pessoa. Pergunto sempre quais os hábitos de leitura de quem vai receber o livro, porque não posso escrever da mesma maneira para uma pessoa que só lê jornais desportivos ou económicos e para outra que adora ler Fernando Pessoa. Não quero escrever um livro por escrever um livro, quero que a pessoa em questão o leia do princípio ao fim.

Qual o livro que mais a marcou?

Tem havido histórias completamente diferentes que têm sido marcantes, por diferentes razões, às vezes porque me questionam em relação à minha própria vida ou porque me ensinam a ver as coisas de uma outra forma. As mais dolorosas foram as de pessoas que estavam com doenças terminais e queriam deixar as suas últimas mensagens. Torna-se mais difícil porque são pessoas da minha faixa etária. Penso ‘Caramba, ainda quero viver muita coisa’. Quando as pessoas me procuram, o tempo já não é muito e isso é um factor de pressão extra. Já houve histórias em que, por momentos, duvidei que chegaria a tempo às mãos da pessoa e, para mim, era importante que lesse e validasse o que aconteceu.

Depois, também há outras histórias que marcam pela cumplicidade que se gera no processo. Houve um livro em que uma rapariga pedia em casamento um rapaz que vivia na Austrália. Por regra, sou eu que envio os livros por correio, mas ela queria enviar mais algumas coisas e tratou disso. Enviou por correio normal e o livro não chegou. Durante os quatro meses seguintes, sofremos juntas. Até que o livro apareceu e ficaram noivos.

Consegue criar algum tipo de defesa emocional?

Não. Envolvo-me, rio, choro e tiram-me o sono… Algumas são difíceis. Há pessoas que não percebem que um livro precisa de um bocadinho mais de tempo, mas também tenho aquelas pessoas para quem aquilo é tão especial que acreditam que no tempo certo o livro vai estar pronto. Uma dessas histórias, um processo que durou mais de um ano porque envolvia muitos testemunhos, era o luto de uma menina que morreu com 8 anos, filha única. Não havia como não me emocionar com o que disseram os colegas da escola, as professoras e toda a gente que se cruzou com ela. Foi como que já a conhecesse. As reuniões com a mãe, os muitos cafezinhos que bebemos… acabo por fazer um bocadinho parte desse processo e não sei como me defender. Quando ando mais séria e não me apetece conversar tanto, é porque há alguma história que me está a absorver. Se eu tenho uma defesa é que, quando termino uma história, às vezes já não me lembro de alguns detalhes, é como se eu fechasse aquela gaveta e o assunto ficasse arrumado.

Passou a acreditar mais ou menos na humanidade?

Os meus livros estão cheios de afetos. Mesmo que tratem de algo doloroso ou mesmo um luto, são sempre uma memória boa de alguém. Não escrevo coisas más, mesmo quando a realidade é muito dura. É importante não fazermos de conta que não aconteceram determinadas coisas, mas não vale a pena torná-lo mais importante do que é. Temos é de valorizar as implicações que isso teve.

Os meus livros são a prova de que o amor aparece ao virar da esquina, das formas mais incríveis, absurdas até, em qualquer idade, e isso só me faz ter esperança na humanidade.

Daquilo que eu observo nos livros, são as nossas vivências que vão trazer o melhor de nós ao de cima. Já houve pessoas que reconheceram que os acontecimentos as mudaram, e se foi isso que resultou de tanta dor, valeu a pena, apesar de tudo, e isso é reconfortante. Os livros acabam por ser um momento de união. Tive um neto que me pediu para escrever a história da avó. No dia do casamento da neta, reuniram a família para ler a história e ela chorava copiosamente e repetia: “A minha história é tão bonita!” A senhora já morreu, mas foi uma memória que ficou com eles todos, não foi só o facto de terem um livro sobre a vida da avó, foi ela própria ter ouvido a sua história e de ter ficado agradada com isso. Inicialmente achei que só ia fazer histórias de amor. Em algum momento da minha inquietação jornalística eu queria ser repórter de guerra. Agora dou por mim a analisar a vida com base naquilo com que sou confrontada nos livros. Eu também tenho a minha guerra, são as histórias que me aparecem – algumas são murros no estômago, bombas que rebentam nas minhas mãos. Eu é que tenho de evitar os danos colaterais que elas podem causar na vida das outras pessoas. E como em qualquer palco de guerra, há histórias de amor, de famílias, que se afastam, que se aproximam. Todos acabamos por ter a nossa pequenina missão e a minha é esta: não escrevo num exercício de vaidade, aquilo que escrevemos tem de ter uma mensagem, tem de ter impacto na vida dos outros. Mais impacto do que um livro que é escrito de propósito para alguém é difícil. Uma história universal tocará a muitos ao mesmo tempo, eu vou tocando um a um.

Texto originalmente publicado na revista ACTIVA de Dezembro de 2020

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