Fotos: João Pedro Tomaz

Diz que tem resposta para tudo, ou não fosse ela uma mulher do Norte. A pronúncia não engana, e se esta entrevista tivesse instruções de leitura recomendaria ler as palavras de Marta Bateira com as vogais abertas e ditongos bem pronunciados. Quanto à cadência, o turbo sempre ligado, de quem tem “ganas” para mudar o mundo.

O ritmo é o do rap – o seu nome já foi 7… M7, quando era rapper ao lado de Capicua – e, na sua história, material não falta para as barras da banda sonora da sua vida, que foi compondo em freestyle. Na gíria do Hip Hop diríamos que tem muito flow, capacidade de adaptação e improviso, em palco e fora dele. A mais nova de quatro irmãos, a mãe morreu quando tinha apenas seis anos. Um punchline duro para a estrofe da infância e que ressoa bem alto na pessoa em que se tornou.

No hood portuense – de Gaia mudou-se para o Porto, um outro beat – conheceu as amigas de sempre e para sempre, à crew feminista e ‘revolucionária’ diz dever tudo, com ela aprendeu que podia ser “a boss da cena”, uma MC numa interminável batalha contra o machismo e outras injustiças e discriminações.

Às mulheres da sua vida adicionou, há dois anos, Luiza (com Z, como na música de Tom Jobim) e é agora uma ‘aprendiz do seu amor’. A mudança foi grande, morreu e renasceu numa outra pessoa, que aprende agora a (re)conhecer. A maternidade é dura (ainda mais a solo), aprendeu no batente, mas o seu alter ego humorístico, Beatriz Gosta – que nos chega desbocada através do seu canal de Youtube ou dos seus espetáculos de stand up -, de certa forma salvou-a, como tantas vezes tem feito, ajudando-a a enfrentar medos e inseguranças

Aos 41 anos, com a “cara a cair” (quanto às mamas, tudo em cima!), o drip de Marta está escrito nestas linhas, onde sirvo apenas de beatbox, pouco interferindo nas suas rimas – talvez um scratch ou outro para aligeirar algum vernáculo. De resto tudo “pau!”. Ou, mano, será “pum!”?

O que é ser uma mulher livre?

Posso considerar-me livre no sentido em que sabia o que queria e tal, mas sempre fui muito tímida e muito insegura, ainda sou. Fui-me desconstruindo ao logo da vida e percebendo que a gente tem de ir mesmo com medo, para conseguir as coisas. Se não, vai estar sempre a olhar para trás a pensar no que podia ter feito. Mesmo assim, deixei o comboio passar várias vezes e não o apanhei, deixei passar sonhos que não realizei.

Por exemplo?

A carreira de rapper… Foi por muito medo, muita insegurança, por achar que não era boa o suficiente. Cheguei a fazer mixtapes, a cantar ao vivo com a Capicua, mas não ultrapassei o medo. Com o humor, trabalhei os meus medos mais a fundo. A Beatriz Gosta fez mais coisas pela Marta, subir ao palco sozinha com espetáculos de stand up, fazer televisão, rádio, vox pop, várias coisas que eu fui furando e em que acabei por me sair bem. Se não tivesse feito, nunca saberia.

Ou seja, foi o teu primeiro projeto a solo…

Era protagonista, porque tu quando ficas na sombra acabas sempre por nunca saber se és capaz.

Achas que podias ter arriscado mais cedo?

Nunca é tarde… Tu, com 60 anos, podes sempre dar uma guinada incrível na tua vida, a mim foi aos 32 que isso aconteceu. Mas antes eu tive experiência de palco com a Capicua, um curso de Moda, nada se perde. Houve uma altura em que era designer de moda numa empresa, dava concertos ao fim de semana e ainda filmava os vídeos para o Youtube. Só saltei de uma cena para a outra quando estava segura, dentro do que se considera seguro, mas também arrisquei. Despedi-me e pensei, “olha, vou-me permitir fazer isto durante um ano a ver se isto pum!”.

E o rap?

Vamos ver se um dia ainda se faz respiração boca a boca e se ressuscita o morto. Às vezes, escrevo umas coisas mas ainda não fechei, assim, músicas. Se calhar um dia.

Com a Beatriz Gosta foi a primeira vez que apresentaste o teu humor ao mundo…

Tinha uma graça natural, o meu jeito de comunicar, e foram as pessoas que me começaram a chamar humorista quando o meu trabalho saiu cá para fora. Sou uma boa contadora de histórias, assim animada mesmo, os detalhes, aquilo fica rico. A pessoa não adormece, fica ligada. Foi uma coisa muito orgânica. Antes do primeiro vídeo, o Pack Night, nunca tinha falado para uma câmara. É freestyle. Não há texto, tenho tópicos e depois é improviso.

E como passaste para o stand up?

Demorou muito tempo, as pessoas convidavam-me, eu dizia que não. Até que a Joana Marques e o João Leitão convidaram-me para abrir o Altos e Baixos. Eu fui podre, uma hora e tal, não estive bem, o povo não riu muito. A gente diz que faz parte do processo, mas que vergonha, fiz uma figura. Quis morrer. No Porto Comedy, com o Herman José, tinha 15 minutos, estive bem, as pessoas riram bastante. Mas estava cagada, do tipo nem dormia…

Já te deu alguma branca daquelas?

Nunca me dá brancas, sou uma mulher do Norte, tenho sempre resposta. Em palco, tu assumes, tens adrenalina que te come toda, ao assumires fazes piada… Já tive de ir fazer um chichi a meio de um espetáculo. Tinha bebido muita água porque estava nervosa e tive de dizer “amores, tenho de ir fazer chichi”.

Apaixonaste-te pelo stand up? Mais do que pelos vídeos?

Sim, são coisas diferentes, adoro editado, avacalha-se de outro jeito, no palco é outra energia, o público e tu, estás sempre a fazer coisas diferentes, cada sítio exige uma coisa diferente. Tens de saber ler o público que tens. Quando sei que vão estar crianças, por exemplo, adapto. Para um miúdo de 10 anos aquilo é puxado…

E a reação do público?

Tenho problemas na vida privada por causa disso. Uma mulher patroa já intimida, uma mulher que faz comédia, então… Se há coisa com que um homem se sente apoquentado na vida é que o ridicularizem. Se queres matar um homem, é só fazer piada dele. Mas não há como não fazer. Eles abusam, eles imploram. Claro que não é qualquer homem que se sente seguro comigo.

As tuas amigas mudaram a tua vida?

Elas abriram um caminho que eu não sabia que havia. Conheci-as – a Ana (Capicua), a Joana, a Mariana, a Dagmara… – através do hip hop. Morava ao pé do Norte Shopping, em Aldoar, e parava com adolescentes que faziam Hip Hop. Era uma coisa de bairro. Elas levaram-me com elas e mostraram-me o que eu poderia ser. Tinha 15 anos, era tímida, precisava muito da aprovação dos rapazes, não sabia que poderia ser eu a boss da cena, mandar na minha vida. Elas já eram feministas, de esquerda, eram politizadas – do PSR. Não se falava de feminismo em minha casa, nunca tinha ouvido falar desse palavrão. Puxaram-me, levaram-me com elas e mostraram-me o mundo. Ouviram-me e permitiram-me ser. E somos amigas até hoje.

A minha mãe era mais conservadora que o meu pai, ia-me controlar mesmo. E uma mãe é uma mãe. Fui extremamente rebelde, o meu pai patinou muito, ele punha-me de castigo e eu fugia. Fui apanhada a roubar, tive um coma alcoólico aos 14…

Disseste que se a tua mãe ainda fosse viva não serias a mesma Marta…

É verdade. Essas coisas são extremamente importantes e condicionam tudo, tudo fez o que sou hoje. Se a minha mãe estivesse viva, para o bem e para o mal, tudo seria diferente. Agora na maternidade teria ajudado bastante, não me teria sentido tão só.

Não sei como seria, só sei que seria diferente, teria feito outras coisas, não estas.

E o teu pai?

E hoje, como é que ele vê o seu trabalho?

Quando comecei a Beatriz Gosta, combinei com o meu pai que ele não ia ver o meu trabalho. Ele nunca me viu ao vivo e ainda bem. Não sou eu que estou ali, aquilo bate no vermelho de tal forma que estares ali a olhar para a tua filha seria forte demais.

É frustrante ser feminista?

Como em qualquer luta, o feminismo exige sempre uma revolta, uma indignação que está ali sempre, um não conformismo.

Fico indignada com as mulheres que não são feministas, foram completamente engolidas pelo patriarcado. Não, amiga, há outro caminho.

Um dia que acordes, nunca mais vais querer saber dessa vida miserável, vais querer mais para ti e para os teus… O feminismo não é só bom para as mulheres, é bom para os homens também, não é contra eles. Às vezes é cansativo. Sempre que me pronuncio nas redes sociais, perco seguidores. As pessoas querem uma pessoa afrouxada, com bola baixa, que está sempre ‘a vida é o máximo, não vejo nada de mal…’. Isso é tu viveres completamente alienado, tanto faz como fez, ‘vim aqui ver a bola e já vou’… Não, mano. Tenho no rap e no humor um apoquentamento para mudar o mundo, de querer para a minha filha um mundo melhor, de querer marcar a diferença em alguma coisa.

E nem te quero falar sobre o feminismo relacionado com a parentalidade: homens que não querem estar com os filhos, que acham que os 100 paus que dão de pensão é para a mãe ficar rica, um machismo aí, vou-te contar! O homem não muda nada na rotina dele e a mulher que se aguente à bronca. As mulheres também são machistas, “ai eles não fazem nada bem”. Se faz torto é até fazer direito. Eu cozinho torto, e não me parece que alguma vez vá cozinhar direito, porque não gosto. Mas morrer à fome aqui ninguém morre.

Qual a maior mentira que ainda contamos às mulheres?

Que a maternidade é orgânica, natural. Tive ali um momento… Morri – no início é um camião que te atropela. Achei que me iam esquecer ou que nunca mais ia rir, não gostava do meu corpo… Mas lentamente, com ela a ficar cada vez mais autónoma, vais voltando. Já gosto mais de mim, já consigo fazer um skincare, fazer cocó até ao fim, tomar um banho… Já é qualquer coisa.

É uma mudança muito forte e ninguém nos falou sobre isso. Os nossos pais nunca nos disseram que, quando nós chegámos, tinha sido uma mudança. Para não falar do que é ser casada. Quando és solteira, és encalhada. E é uma coisa ótima. Homem às vezes é encosto, é cruz. Juro-te!

Como é ter uma menina?

Sempre quis ter uma rapariga. Está-me a ensinar coisas que eu nunca imaginei. Já começa a falar, diz o que quer e o que não quer, e dá-me beijinhos à esquimó. Aprende-se no terreno, se soubesse o que sei hoje ter-me-ia mudado para casa da minha irmã, por exemplo, em vez de achar que podia dar conta do recado aqui sozinha. Tens que dormir para ser melhor mãe, para estares mais presente. Ter disponibilidade real para ela, é o que eu busco.

O humor ajudou?

Sim, ajudou-me muito nessa fase difícil, de estar grávida – que eu não gostei nada – e de ser mãe. E as pessoas identificaram-se muito com as séries ‘Embaraçada’ e ‘Desembaraçada’ da Beatriz Gosta. Vim dar voz às mães, àquelas sobrecarregadas que romantizaram a dizer que são guerreiras. Coitadas, a que preço?

Os 40 foram um marco?

Eu já estava a sentir a cara a cair. Essa coisa de ser um espírito livre é um trabalho diário. Ser feminista é teres a escolha do “apetece-me pintar o cabelo”, “apetece-me pôr silicone nas mamas”… Eu sou pela aceitação, mas não tenho que viver a única vida que tenho – que eu saiba – com umas peles caídas até ao chão.

O que dirias agora à Marta adolescente?

Que a vida é coragem, que tens de gostar e acreditar em ti. Olhas para os adultos e achas que eles sabem o que estão a fazer ou a dizer. Diria à Marta que eles não sabem, eles fingem é muito bem.

O que te dá coragem?

Conhecer o sabor de ter concretizado algo que queria mas que achei que não conseguiria. A Capicua e os meus amigos dão-me coragem. A Luiza dá-me coragem. Mas continuo a ter medo: de fazer projetos e serem um fracasso, da Beatriz Gosta ter acabado e de não ter percebido, de não saber se viro à esquerda ou à direita… Tenho medo de acordar um dia e não ver mais sentido, aquela alegria de viver, as ganas que me dá de acordar e querer mudar o mundo. Tenho muito medo disso.

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