Esta entrevista foi feita em duas partes, tal como uma mini-série. Muitos pormenores não caberão nestas páginas, mas fica uma ideia do que terá sido a vida de Mariana Rafael, 75 anos, em criança, com os seus pais, e mais tarde, em adulta, com o seu companheiro de luta por quem se viria a apaixonar, Armando Morais. Enquanto Mariana contava a sua história de vida, ao lado do marido e da sua neta Sofia, só me vinham à cabeça os filmes sobre a resistência na altura da Segunda Guerra Mundial. Troque-se os nazis pela Pide, os colaboracionistas pelos bufos, e o ambiente de medo é semelhante. Mas vamos ao que interessa.
A Mariana nasceu na clandestinidade. Como aconteceu?
Sim, nasci em 1949, na freguesia de Penalva, no concelho do Barreiro. Como os meus pais eram funcionários do Partido Comunista Português, que era proibido na altura, e os seus membros era perseguidos, presos e torturados ferozmente, eles viviam com identidades falsas e trabalhavam em segredo, com uma tipografia que imprimia jornais ditos ‘ilegais’ como o ‘Camponês’, o ‘Corticeiro’, e claro o ‘Avante’. E eu nasci nessas circunstâncias.
E viveu sempre com os seus pais?
Não, numa primeira fase, vivi com eles até aos meus 2 anos e meio. Com essa idade, comecei a falar bem, era muito explicada e curiosa. Via o meu pai a compor as páginas com os caracteres e perguntei-lhe o que eram e ele respondeu ‘pregos’. Um dia, saio de casa com a minha mãe e uma vizinha, pergunta-me onde vou e eu respondo: ‘vou às compras com a mãezinha e o paizinho está em casa a fazer pregos’. Foi aí que os meus pais perceberam que eu já não podia continuar com eles, porque podia falar e pô-los em risco. Fui então para Vale de Vargo, Serpa, para casa dos meus tio e da minha avó, que me acolheram com muito carinho
Do que se lembra desses tempos?
Vivi com eles 5 anos. Era uma gente muito boa, vivíamos numa aldeia de operários agrícolas. Todos os terrenos estavam nas mãos de duas famílias, e os operários agrícolas só conseguiam trabalhar na altura das ceifas, pela monda e apanha da azeitona. O resto do tempo passavam muita fome. Por isso havia tantas lutas, havia muita fome.
São memórias que a marcaram?
Sim, lembro-me de os GNR prenderem o meu tio porque ele organizava greves e a minha tia porque alimentava os grevistas que lutavam por um salário melhor. Não sei se consigo passar aos mais novos o que era aquela fome, as pessoas não terem absolutamente nada para comer, compravam fiado, 5 tostões de café, de farinha… houve um homem que levou tiros da GNR porque estava tão desesperado que foi roubar bolotas para dar aos filhos. Havia muita miséria no Alentejo.
Não estranhou ter deixado de ver os seus pais?
Era muito pequena, tenho uma vaga ideia de alguns sentimentos. O meu pai era um homem muito meigo. Mas aos 7 anos voltei para junto deles.
Voltou a entrar na clandestinidade com essa idade?
Sim, fomos viver para Espinho. Só voltei a ver a minha família em Vale de Vargo 18 anos mais tarde, depois do 25 de abril.
Durante esse tempo todo nunca soube nada deles nem eles de si?
Não, isso foi o mais difícil, a maior mágoa. Todos que lutámos contra o fascismo temos muitas marcas. Uns foram presos, torturados, outros viram amigos e familiares mortos pela Pide. Eu tive a sorte de nunca ter sido presa, nem os meus pais, mas tenho as marcas de ter vivido num grande isolamento, distante da família que adorava.
E percebeu o que era viver na clandestinidade com 7 anos?
Sim, claro, as crianças percebem. Os meus pais disseram-me que ia passar a chamar-me Maria, que eles eram o Zé e a Maria da Conceição – eles chamavam-se Joaquim e Catarina. Tínhamos sempre nomes, origens e biografias diferentes em todas as casas por onde passei.
E passou por muitas casas?
Com os meus pais, dos 7 aos 17, vivi em 24 casas diferentes. Com o Armando foram mais 5. Em algumas vivemos anos, outras poucos meses. Quando desconfiávamos que a nossa casa podia estar a ser vigiada ou tinham prendido camaradas que tinham estado em contacto connosco, tínhamos de mudar. Foi uma vida sob grande stresse, num palco, e a olhar por cima do ombro, noite e dia, a ver se alguém nos seguia, que carros passavam por nós, se passavam mais do que uma vez, quem lá ía dentro.
Nunca se enganou na sua história?
Não, as crianças têm boa memória. Lembro-me de, em criança, pensar para mim própria, ‘agora vou fazer de conta que sou fulana de tal, nasci na terra tal, e os meus pais chamam-se assim…’ e quando se mudava de casa, tudo se repetia.
A Mariana não ia à escola?
Não, em Vale de Vargo andei na primeira classe e depois saí em maio. Era alta para a idade e fingia que já tinha 10 anos. Seria complicado porque teria de arranjar documentos falsos, fotografia, e se tivesse de fugir era um problema. Mas aprendi muito com os meus pais e com amigos deles. Assim que aprendi a ler, devorava livros, é um vício que eu tenho até hoje, a leitura. Em adulta estudei em Moscovo, e mais tarde, depois do 25 de abril, fiz o curso de Ciências da Comunicação.
As saídas das casas eram sempre abruptas?
Sim, quando havia uma suspeita, tínhamos logo de sair. E não se esqueça que tínhamos de levar a tipografia que era pesada. Uma vez, em Coimbrões, só estivemos 3 meses porque a minha mãe foi sacudir o pano do pó à janela e viu um vizinho de uma terra onde tínhamos estado com outros nomes. Noutra, em Odivelas, fomos a uma mercearia e um dos empregados era de Vila Nova de Gaia, de onde tínhamos saído, e ele reconheceu-nos. A minha mãe ainda tentou disfarçar, dizendo tinha uma irmã parecida com ela, mas ele olhou para mim e achou coincidência a mais. Tivemos de sair imediatamente. Houve uma vez, em que estivemos 2 anos e meio em Ourém, numa casa no meio do campo sem água ou luz, em que tínhamos animais. Quando se suspeitou que a casa pudesse estar sob vigilância da Pide, aguentámos 3 dias para vender os animais e a ração para diminuir o prejuízo. Foram 3 dias aterradores, ouvíamos os ratos à noite e pensávamos que eram os pides a rodear a casa.
O que diziam aos vizinhos?
A desculpa era quase sempre uma morte inesperada na família.
Os seus pais dedicavam-se a fazer os jornais clandestinos?
Sim, mas tinha de fingir que tinha uma profissão que permitisse passar muito tempo fora ou em casa. Geralmente era caixeiro-viajante. Ele passava o tempo em reuniões, à noite a compor as páginas e a imprimir durante o dia. A impressão do papel tinha um som característico que tinha de ser disfarçada, assim como o cheiro a tinta, e de dia podia abrir-se as janelas e o barulho era disfarçado pelo bulício normal. No chão punhamos um tapete para abafar mais o barulho.
Os vizinhos nunca desconfiavam?
Que soubéssemos não. Houve uma situação caricata, estava eu ainda em Vale de Vargo, e os meus pais tinham a tipografia no meio da sala de um apartamento na Lapa, em Lisboa. Um prédio com elevador e porteiro, numa zona chique. A vizinha do lado tinha os quartos todos alugados, para ganhar o seu dinheiro, mas queria arranjar um bom partido para a filha e perguntou à minha mãe se podia fazer um baile de Carnaval no apartamento deles. A minha mãe ficou aflita mas tentou adiar a situação dizendo que ia perguntar ao marido.
E fizeram a festa?!
A minha mãe não queria mas o meu pai decidiu aceitar para não levantar suspeitas. Tiraram as máquinas do meio da sala, afastaram os móveis e meteram tudo num quarto tapado com mantas para a sala ter mais espaço. E assim se fez uma festa de carnaval cheia de gente e de música numa casa onde se imprimia o Avante. O camarada que era responsável pelas tipografias ia tendo um ataque cardíaco quando soube mas no fim disse: ‘pelo menos, com esta festa, a casa passou a ser segura’.
Viveu com os seus pais até que idade?
Até aos 17 anos, depois arranjei um passaporte falso e passei a fronteira a salto para Espanha. E depois seguir para França, fui por Zurique, Praga e por fim Moscovo. Vivi lá um ano.
O que foi fazer a Moscovo?
Estudar economia política, filosofia política, russo, e muitas outras disciplinas, aprendi muito. Depois voltei com 18 anos e tive tarefas de organização do Partido durante 3 anos. Aos 21 anos fui viver com o Armando para uma casa clandestina. Tinha-o visto numa reunião, mas nem sabíamos o nome verdadeiro um do outro e tivemos de fingir que éramos um casal. Mas 3 meses depois comunicámos ao Partido que nos tínhamos apaixonado.
Isso era comum?
O que era preciso era fazer o trabalho, havia camaradas que tinham os seus companheiros presos e viviam com outro a fingir, cada um tinha o seu quarto, sem problema. Mas houve mais casos como o nosso.
Disse que viveu com o Armando em 5 casas diferentes…
Sim, logo em 71, passámos por um grande susto, houve a prisão de muitos camaradas e a apareceu uma foto do Armando no jornal, como membro do partido, para ver se alguém o identificava. A família e os amigos pensavam que ele tinha fugido do país para não ir à guerra, mas ele tinha ‘mergulhado’, é o termo que usamos para dizer que alguém passa a viver na clandestinidade. Ainda ponderámos mudar de casa, mas tínhamos acabado de nos mudar e o porteiro não tinha visto o Armando que entretanto pintou o cabelo, e pôs um boné. Felizmente não foi reconhecido.
E nunca se enganaram nas vossas histórias?
Houve uma vez, numa casa na Picheleira, em que os nossos vizinhos insistiram para nós lá irmos a casa ver as mensagens de natal dos soldados em África. O Armando tinha passado toda a noite a fazer distribuição do Avante e em reuniões, estava muito cansado e adormeceu no sofá. Nós tinhamos combinado que eu era das Caldas e ele era de Óbidos, e quando acordou meio estremunhado, e lhe perguntaram sobre a terra dele, ele enganou-se e disse que era das Caldas. Eu, como estava mais habituada a improvisar, disse ‘Oh homem estás tão cansado que já nem sabes de que terra és’. Foi uma risota.
“Todos que lutámos contra o fascismo temos muitas marcas. Uns foram presos, torturados, outros viram amigos e familiares mortos pela Pide. Eu tive a sorte de nunca ter sido presa, nem os meus pais, mas tenho as marcas de ter vivido num grande isolamento.”
Mais tarde decidiram ter filhos?
Sim, temos dois. Queríamos muito ter uma família, embora soubéssemos que haveria uma altura que teríamos de nos separar deles. Era uma angústia muito grande, imensa, para qualquer pai ou mãe. Felizmente connosco isso não aconteceu porque se deu o 25 de abril, mas o Sérgio, o mais velho, já tínhamos decidido que ia para casa da minha avó. A Catarina era bebé.
Falavam muito nisso?
Tinha de ser. Nós vivíamos num andar ao lado de um jovem casal muito simpático, que não tinha filhos e adoravam o Sérgio. Ela era costureira e o marido polícia de choque. E costumavam convidar o Sérgio para ir lá a casa. Um dia, eles convidam-no e o Sérgio diz com toda a clareza que não queria ir porque ‘o Zé estava em casa’. O Zé era o Armando. Foi um choque para nós, sabíamos que brevemente teria de ir para longe de nós.
Não foi de certeza uma decisão fácil…
Das mais difíceis. Falámos sobre qual o melhor sítio para ele, porque sabíamos de filhos que ficavam em casa de familiares que não compreendiam a nossa luta,e diziam às crianças que os pais não estavam com eles porque não queriam. Houve casos de filhos que rejeitaram os pais, imagina a dor que isso é? A nossa luta era por um futuro melhor para os nossos filhos. Salvou-nos dessa separação o 25 de abril.
Só viu a sua família e os seus pais depois do 25 de abril?
A minha avó e os meus tios sim, foi uma grande alegria e tristeza ao mesmo tempo, porque a minha avó não me reconheceu. Eu saí com 7 anos e voltei com 25. Os meus pais, voltei a vê-los uma vez em 73. O meu pai estava gravemente doente, com uma doença pulmonar resultante de muitos anos a trabalhar com a tipografia, com o chumbo e as tintas. Fomos a casa deles para conhecerem o Sérgio e o meu marido.
E como foram até lá?
De comboio, mas não diretamente. Tínhamos de fazer sempre os chamados ‘cortes’, desvios.Para visitarmos os meus pais, fomos na linha do oeste, e levámos mais de 12h a chegar ao destino. Quando chegamos mais perto do sítio onde estavam, fomos vendados para não sabermos onde estavam exatamente. Era uma forma de protegermos as casas e as pessoas.
Como foi viver o 25 de abril de 1974?
Foi uma grande felicidade, maior do que eu consigo transmitir, foi um renascer, foi passar de viver a preto e branco e a viver a cores. É difícil explicar a quem não viveu naquele tempo.
Até 74, a Mariana tinha praticamente vivido a sua vida ‘mergulhada’. Como foi a sensação de chegar à ‘superfície’ em liberdade?
Foi uma felicidade mas acho que demorei a descomprimir, adormeci várias noites a chorar. Tive vários dias com um febrão de 40ºC. Precisei de descomprimir 25 anos de completa tensão. Lembro-me de, há uns anos, ler o livro ‘Vento do Oriente, Vento do ocidente’ da escritora Pearl S. Buck, em que ela conta a história de uma chinesa casada com um oficial americano que a incentiva a desenfaixar os pés. Na China deformavam os pés com ligaduras para estes não crescerem. E ela, que tem dores horríveis com os pés enfaixados, quando os ‘liberta’ para ficarem na posição normal, tem também dores horríveis. Eu identifiquei-me com isso, com o 25 de abril pude descomprimir. Foi como se tivesse vivido sempre com as minhas emoções silenciadas, em que não podia ser eu, não podia falar nem pensar livremente. Foi doloroso até me adaptar totalmente, mas valeu muito a pena, viver em liberdade é uma coisa maravilhosa.
Depois do 25 de abril voltou a um palco mas por bons motivos, não foi?
Ah sim, em 2022, o Armando e eu, e outras pessoas que viveram na clandestinidade, fomos convidados pelo André Amálio, da companhia teatral Hotel Europa, para contarmos a nossa história em palco. A peça chamava-se ‘Esta é a minha história de amor’. Foi muito bonito, gostei muito ver que as pessoas também gostaram.
“Só vi a minha avó e os meus tios depois do 25 de abril.
Foi uma grande alegria e tristeza ao mesmo tempo, porque
a minha avó não me reconheceu.
Saí de casa dela com 7 anos e voltei com 25.”