Frio, nuvens, vários tons de cinzento coloriam o céu no dia da entrevista e produção fotográfica. Não podia contrastar mais com a personalidade solar de Geninha, uma alegria contagiante que só é toldada quando fala na morte do marido. Nunca conheci pessoalmente Francisco Varatojo, a grande referência da Macrobiótica em Portugal, que desapareceu com apenas 56 anos, num acidente de mergulho, em 2017. Passaram sete anos e continua a falar-se do seu nome com saudade, mais ainda a sua mulher e companheira de sempre Geninha Horta Varatojo. Era impossível falar de Francisco sem pensar em Geninha, e vice-versa, um complementava o outro, funcionavam em par e a par. Foram 37 anos de vida em comum que terminaram de repente, sem aviso. Nas palavras de Geninha, o choque foi grande, enorme, avassalador, esmagador, mas já fez as pazes. Por coincidência maravilhosa, diz Geninha, “dois dias depois do Francisco nos deixar nasceu a nossa neta Jasmim”. Foi o que lhes deu alento e alegria numa altura em que o universo pareceu deixar de fazer sentido. E se Francisco Varatojo era o rosto mais conhecido da Macrobiótica, Geninha era o seu braço direito e esquerdo, o seu apoio, e porto de abrigo nos bastidores. Quisemos conhecê-la um pouco mais numa altura em que os ensinamentos de Francisco voltam à ribalta, ao ser publicado ‘O Grande Livro da Macrobiótica’, uma compilação dos seus cadernos, fiéis depositários do seu conhecimento partilhado com os milhares de pessoas com quem ele privou.
A produção decorreu no restaurante Capítulo e no Convent Square Hotel, bem no coração da Baixa lisboeta. Fui a primeira a chegar e logo começámos a entrevista. Enquanto falávamos, bebia o chá que trouxe de Marraquexe. O aroma perfumado da mistura de ervas foi uma constante na conversa que tivemos antes, durante e depois das fotos. Engraçado como o tema da alimentação macrobiótica desperta a curiosidade de todos. Enquanto se maquilhava, Geninha fala de como os filhos, desde pequenos, adoram legumes, que a mais velha, Marta – entrevistada pela ACTIVA há 3 anos –, tinha uma predileção por grelos salteados com azeite e vinagre, e que até a neta, Jasmim, adora rabanete em pickle (feito em casa). Curiosa? Venha daí conhecê-la melhor.
Onde e quando nasceu a Geninha?
Nasci em Lisboa, a 30 de março de 1958. Tive uma infância pacífica e os mesmos problemas dos adolescentes na altura, tudo tranquilo.
É filha única?
Não, sou a mais velha de seis irmãos. Era uma casa cheia e ajudei os meus pais a criá-los. Os meus pais eram pessoas modestas, bem dispostas, muito trabalhadoras, alentejanos de gema, não tinham grandes possibilidades mas conseguiram dar estudos a todos nós, o que na altura era um feito. Eu fiz o 11.º e 12.º ano à noite, já a trabalhar.
Queria seguir que profissão?
Não tinha uma ideia definida, mas sei que queria viajar. Antes de conhecer o Francisco, a minha ideia era ir para fora, viajar, trabalhar. Pensei em ser hospedeira, mas nunca levei isso muito a sério.
Como surgiu o interesse pela macrobiótica?
Foi quando conheci o Francisco. Na altura, em 1982, era secretária num escritório de engenheiros e um dia fui ter com um amigo que trabalhava num restaurante, perto do Marquês de Pombal, que era um centro macrobiótico, chamado Unimave. Não fazia a mínima ideia do que era. Estava com o meu amigo quando aparece um rapaz, o Francisco, que tinha na altura 21 anos. Era um miúdo mas muito maduro para a idade, já na altura dava aulas de macrobiótica e conferências, consultas, tinha vindo de Boston, onde tinha estudado com Michio Kushi e a sua mulher, Aveline, os ‘pais’ da macrobiótica. Convidou-me para ir a uma palestra que ia dar nessa semana. Aceitei o convite e fiquei maravilhada porque era uma filosofia de vida que fazia todo o sentido para mim. Não é só mudar de alimentação, é uma forma de estar, de sermos mais conscientes e de compreender e respeitar o mundo, o planeta onde vivemos. Na altura, pensei ‘quero isto na minha vida’. No início limitei-me a substituir alguns elementos, não precisa de ser uma mudança radical. Em vez de fazer uma jardineira de carne, trocamos a carne por seitan ou tofu. Adaptas as receitas e usas mais leguminosas e legumes.
“O Francisco era das pessoas mais íntegras e honestas que conheci, ele fazia exatamente aquilo que defendia. Era uma luz, um homem apaixonado pela vida, por aquilo que ensinava. Era muito difícil não gostar dele.”
Foi paixão à primeira vista com o Francisco?
Mais ou menos, mas foi tudo muito rápido connosco. Eu fui-me apaixonando por aquele homem tão rico de ideias, de pensamento, de carácter. Tudo se resumiu a: conheci-o em fevereiro, nesse ano começámos a namorar, mudei de alimentação, deixei o meu emprego, fomos para Londres para eu poder estudar num centro macrobiótico que tinha também um restaurante, engravidei e casámos em agosto. Tivemos quatro filhos e nasceram todos entre os meus 23 e 30 anos. A Marta, a Joana, a Sofia e o Francisco. Quando cheguei ao quarto filho, disse ‘acho que já chega, já está bem assim’. (risos) Quatro filhos que hoje são o meu alento, assim como a minha neta, a Jasmim, que vai fazer sete anos no mesmo mês em que o Francisco faleceu. Ela era para nascer a 9 de agosto mas acabou por nascer a 9 de julho, dois dias depois de o avô falecer… a minha filha teve de deixar o bebé na clínica para ir ao funeral do pai. Foi um grande choque para todos e ainda mais para ela, que estava grávida de 8 meses. A alegria de ter uma filha e a tristeza de o pai ter partido em simultâneo. O choque da morte do pai acelerou o parto. Mas tudo fez sentido porque sem a Jasmim tudo teria sido muito mais difícil. A chegada dela conseguiu fazer-nos sorrir quando não tínhamos vontade nem razões para isso. Ela conseguiu essa magia.
Aproveito para perguntar: o que é a macrobiótica?
É uma filosofia de vida, um movimento ambiental e social que pretende ajudar a construir um mundo mais pacífico e saudável. Eu chamo-lhe Arte de Saber Viver. Viver e comer com mais harmonia e maior consciência de que todas as nossas escolhas fazem toda a diferença, em nós, nos outros e no planeta em que vivemos. Agora fala-se muito na importância da alimentação à base de vegetais na nossa saúde, na altura, nos anos 80, éramos um bocadinho vistos como uns extraterrestres. (risos)
Todos os seus filhos seguem esta alimentação?
Os meus filhos nunca comeram um bife ou hambúrguer de carne até hoje. Eu, atualmente, posso comer muita coisa, mas carne não consigo, por uma questão de saúde e de ética. A forma como se come hoje em dia é muito preocupante. Não sou fundamentalista mas é preocupante os excessos que se cometem com a alimentação. Todos os meus filhos já saíram de casa, são adultos, e cada um a trilhar o seu caminho de vida. Estiveram ligados ao Instituto Macrobiótico de Portugal (IMP) enquanto lá estive, foram muitos anos por lá, e neste momento desejam descobrir o seu próprio caminho.
Quando eram pequenos levavam almoço de casa?
Sim, claro, através dos menus que a escola praticava eu adaptava com alimentos que penso serem de melhor qualidade. Imagine que era almôndegas com esparguete, eu fazia almôndegas de seitan com esparguete integral com um molho que eles gostassem. Tentava preparar refeições parecidas com as da escola. Não quer dizer que não tenham experimentado outras coisas, uns doces aqui e acolá… Comeram uma vez frango em casa da minha sogra, e eles perguntaram ‘ó avó que peixe é este?’. (risos)
A Geninha dava cursos de culinária mas deixou de dar aulas, há 7 anos, quando o seu marido faleceu?
Sim, fiquei a dirigir o Instituto, a tempo inteiro. Também deixou de me apetecer cozinhar, um dia, estava em casa a cozinhar e de repente parecia que mais ninguém ia comer o que cozinhasse, senti uma enorme frustração e tristeza. E por uns tempos foi assim que me senti, mas ao fim de algum tempo voltei a tomar o gosto, a adorar cozinhar novamente, dentro dos princípios da macrobiótica, sem fundamentalismos, com muito sabor e cor e amor.
O tema desta edição é ‘amores e desamores’…
A minha história com o Francisco é uma história de amor que foi ganhando raízes, alicerces e ferramentas ao longo de 37 anos, em que fomos lidando e crescendo com as nossas diferenças. Sempre pensei que ficaríamos os dois velhinhos e a passear por muitos lugares. A macrobiótica tem também a ver com amor, amar os outros, o planeta, os animais, e para isso tens de te amar, cuidar de ti, para viveres com qualidade de vida e sentires gratidão por estares aqui. Se nós tivermos essa alegria dentro de nós, é mais fácil amar os outros, ser grata pela família, amigos, a tua casa e a abundância que o planeta nos oferece. Não se trata só de comida. Podes comer bem, mas se saíres à rua e tratares mal o teu semelhante algo não está bem contigo…
“A forma como se come hoje em dia é muito preocupante. Não sou fundamentalista mas é preocupante os excessos que se cometem com a alimentação.”
Começaram a crescer após a abertura do IMP?
Devagarinho, começámos com as palestras do Francisco e cursos de macrobiótica de vários níveis, depois passámos a ter um curso de Shiatsu, Feng shui e Yoga, Chi Kung, organizámos os retiros, o festival Zimp… Tudo foi acontecendo com uma grande entrega da nossa parte, era a nossa forma de estar na vida e assim chegámos a 2017 e o Francisco despediu-se, foi-se embora, como se dissesse, “eu já fiz o meu trabalho aqui, agora é a vossa vez de continuarem a divulgar esta Grande Vida”.
É assim que encara a sua morte?
É sim, eu acho que foi ‘chamado’ para trabalhar de outra forma, porque ele não viveu apenas 56 anos, foram mais de 100, porque vivia intensamente tudo o que fazia. Adorava fazer mergulho, maratonas, ouvir música e dançar. Aliás, nesse ano ia fazer a maratona de Berlim com uns amigos, mandou fazer t-shirts com o símbolo do IMP, encomendou uns ténis superleves… e ele foi o único que não participou. Lembro-me de ir com a minha filha Sofia a Berlim levantar o dorsal dele e quando nos foi entregue sentimos um misto de tristeza e alegria. Dias antes, o carteiro tinha batido à porta para entregar os ténis que iria usar naquela maratona, foi muita emoção.
Fez as pazes com o mar?
Sim, completamente. Um amigo dele ligou-me algum tempo depois a contar que, numa das muitas viagens de mergulho que tinham feito juntos, um dia falaram sobre a Morte e que o Francisco tinha dito que quando morresse gostaria que fosse junto da família, ou no fundo do mar… e assim foi.
Mais tarde veio a pandemia, afetou o IMP?
Imenso, éramos uma pequena empresa, com quase 15 empregados, e de repente, com a pandemia, não podes ter quase ninguém no restaurante, nem pessoas nos cursos presencialmente, tens de te reinventar completamente. Foram dois anos assim, muito difícil financeiramente. Com o Francisco éramos os dois a levar o barco em frente. Sozinha, não senti a mesma força, ou antes, a mesma vontade. Apesar de nunca ter estado sozinha, tinha os meus filhos e uma equipa fantástica que era como uma família, mas alguém tinha de gerir a parte financeira. Saí sem uma única dívida, foi uma bênção. Fiquei feliz por sair dessa forma.
Como é agora o seu dia a dia?
Durante o confinamento recomecei a pintar. Era um hobby que tinha há muitos anos e foi assim que eu percebi que tinha outros interesses, que havia coisas que gostava muito de fazer para além de dar aulas de culinária. Quanto ao meu dia a dia, começo a sentir que estou a entrar na idade madura, acho que sinto alguma nostalgia. Olhas para trás e começas a ver que perdeste os teus pais, o marido, amigos, e há momentos em que sentes a falta daquelas presenças, mas a vida não é lá atrás, é aqui e agora e sempre em frente. Eu tentei que essa nostalgia não tomasse conta de mim, ela está lá, cuido dela quando é preciso, mas não deixei que me dominasse. Agora, tenho mais tempo livre e viajo mais. Às vezes, estou na rua e penso como é bom não ter horas marcadas para nada, é uma liberdade que me sabe muito bem, em que começas a sentir que existes, e a sentir gratidão por quem és, com todas as nossas limitações e virtudes.
“Decidimos publicar‘ O Grande Livro da Macrobiótica’ do Francisco porque ele tinha 2 livros e 6 cadernos temáticos com grande procura, e pensei ‘não podem deixar de existir’. Falei com a Leya e concordaram homenageá-lo desta forma.”
Está a redescobrir-se?
Foram 37 anos a trabalhar numa área muito intensa. No início não foi fácil, foi como se houvesse uma nuvem por cima de mim e eu não percebia bem o que estava para lá do nevoeiro, não conseguia ver o meu caminho e para onde ia, mas também percebi que não tinha de correr. Tens de dar tempo ao tempo para ver o que é que ele te vai mostrando… Quando tens um companheiro e uma história de vida em conjunto, é como se andassem sempre os dois, lado a lado. De repente, quando ele falta, tens de te apoiar só em ti. Não sei para onde vou, mas também não é nada que me tire o sono porque sei que quando nos entregamos, e aceitamos de coração, percebemos que não temos nada a perder e que não temos que ter medo de nada nem de ninguém.
Ainda não se vê com outra pessoa?
Durante muito tempo não, não estava preparada para viver o amor dessa forma, precisei de tempo para saber quem sou e o que estou aqui a fazer. Se calhar, um dia posso ter outro relacionamento, alguém com quem possa voltar a partilhar aquilo que faço e o que sou. Não para me sentir completa, se não me sentir completa por mim mesma não é outra pessoa que o vai fazer. Se o amor bater à porta vou abrir, os meus filhos adorariam que isso acontecesse, mas o que estiver aí para mim, estará, logo se vê.
Que mensagem gostaria de dar às nossas leitoras?
Nada nos pode completar a não ser nós mesmos: não é um companheiro, um filho, uma mãe ou um pai. Viemos cá com um propósito, que é cuidarmos de nós, da nossa evolução como seres humanos e dos que nos rodeiam. Somos nós os responsáveis pela nossa felicidade.