Foi um dos rostos que entrou, diariamente, nas nossas casas durante os tempos difíceis de combate à covid-19. Apesar do clima de tensão e medo perante o desconhecido que se vivia então, das dificuldades e das pressões a que foi sujeita, nunca a vimos zangada. Aliás, acredito que a calma da então Diretora-Geral da Saúde, durante esses longos meses, deve ter apaziguado a ansiedade de muitos que aguardavam os diários da pandemia.
De África a Lisboa
Maria da Graça Gregório de Freitas, de seu nome completo, nasceu em Angola, mais concretamente no Huambo, a 26 de agosto de 1957. Foi ali que viveu uma infância feliz, “as memórias que guardo são de uma imensa liberdade. Acho que isso é comum a todas as pessoas que estiveram em África. Éramos meninos e meninas que brincávamos na rua, podíamos ir para casa com os joelhos esfolados e com a roupa suja sem problemas de maior. Recordo essa liberdade, de um mundo mais arejado da minha infância em África, porque vi a diferença que foi quando vim para a terceira classe aqui na metrópole, como se chamava na altura”. Como o trabalho do seu pai, que era funcionário público, obrigava a família a mudar de casa com alguma frequência, decidiu-se que a pequena Graça teria de passar a viver com as tias e frequentar um colégio. Assim, dos 8 aos 16 anos, Graça Freitas viveu o seu quotidiano longe dos pais, só se juntando a eles em vésperas de ir para a Faculdade, que ficava em Luanda. Na hora de optar por um curso superior, Medicina não ficou em primeiro lugar, “escolho a área de Ciências, porque era nela que me revia a trabalhar, mas pensava em seguir Arquitetura ou Engenharia e Silvicultura, ou qualquer coisa ligada à terra, mas acabei por seguir Medicina, influenciada pelas minhas amigas e o meu pai”. Frequentou o primeiro ano do curso de Medicina em Luanda e no final de 1975, devido às lutas pela independência das ex-colónias portuguesas, a família é obrigada a vir para Portugal, tendo Graça Freitas prosseguido os estudos na Faculdade de Medicina de Lisboa, após a realização de exames.
“Ao longo de mais de 40 anos de dedicação à Saúde Pública, tive sempre o contributo de várias pessoas com quem trabalhei. Não fiz este caminho sozinha.”
O primeiro dia do resto da sua vida
Se ao princípio foi convencida, muito rapidamente a escolha veio a revelar-se acertada porque se identificou de imediato com os princípios da Saúde Pública. “Não me lembro exatamente o momento em que senti que tinha feito a escolha certa. Lembro-me da circunstância que me fez optar pela especialidade em Saúde Pública. Foi um colega, ligeiramente mais velho, mais informado que eu, que me conseguiu transmitir a ideia de que numa relação clínica ia tratar de um doente de cada vez, mas que se fizesse coisas para uma população, numa determinada comunidade, eu podia melhorar a vida de todas aquelas pessoas. Esse foi um momento importantíssimo. Foi quando percebi que poderia ter uma carreira a exercer medicina dessa forma, e passou a ser natural.”
A pensar no bem comum
Depois da licenciatura, começa então a frequentar a especialidade em Saúde Pública e a trabalhar numa carreira que durou mais de 40 anos e terminou em 2022, como Diretora-Geral da Saúde e Autoridade de Saúde Nacional, depois de ter sido subdiretora-geral, presidente da Comissão Técnica de Vacinação, coordenadora do Plano Nacional de Vacinação, estado na coordenação e direção dos serviços de prevenção e controlo da doença, em diferentes programas de promoção da saúde pública e lecionado na Faculdade de Medicina 25 anos. Um currículo extenso, pleno de competências que a levou ao topo da carreira como Diretora-Geral da Saúde e durante o qual teve um enorme desafio pela frente: gerir a resposta de saúde pública nacional a uma pandemia causada por um vírus novo, de origem desconhecida, que se espalhou pelo mundo inteiro fazendo milhões de vítimas. Um trabalho que não lhe deu tréguas, dia e noite, durante três anos.Termina a sua carreira com mais de 40 anos no serviço público em 2022 e é condecorada, a 17 de janeiro de 2023, com o grau de Grã-Cruz da Ordem do Mérito pelo Presidente da República portuguesa, Marcelo de Rebelo de Sousa.
Vida com história
Muitos foram os profissionais que deixaram marca na sua memória e Graça Freitas fez questão de referir alguns: “Como aluna, o professor de neurologia, Lobo Antunes, mais tarde, em Santa Maria, um chefe de cirurgia, o dr. João Borregana, que era um homem com um sentido de integridade e justiça incríveis, foi talvez a pessoa que mais me ensinou aquilo que é o primado da medicina, não fazer mal e depois tentar sempre fazer o bem, não desassossegar as pessoas, não angustiar mais do que já estão. Mais tarde, o professor Constantino Sakellarides, que tinha sido meu professor e foi meu Diretor-Geral, um homem muito à frente do seu tempo. Também não posso deixar de mencionar a pessoa de quem fui subdiretora durante 12 anos, Francisco George, e a mulher absolutamente extraordinária, que era subdiretora na área da gestão, de quem era muito amiga, Catarina Senna Fernandes, que morreu com cancro da mama durante a pandemia. E há muitos mais, tive uma sorte incrível de ir conhecendo muitas pessoas a quem estou muito grata.”
“Muitas das pregadeiras que levava para os diretos da pandemia eram gentilmente feitas por pessoas que as enviavam para a sede. Fiquei muito sensibilizada por aqueles gestos”.
Ainda há preconceito
A uma mulher que durante muitos anos esteve em cargos de topo, é natural que se pergunte se alguma vez se sentiu discriminada pelo seu género. A ex-Diretora-Geral da Saúde começa por lembrar uma discriminação positiva, a do seu pai, e de como ele reforçou a ideia de que ela tinha de estudar para ser independente e seguir a carreira que desejasse. Pela negativa, “na pandemia, houve determinadas alturas em que senti discriminação por ser mulher. Surpreendeu-me bastante ver que, para algumas pessoas, ser mulher era um motivo de maior escrutínio, arrogância e desconfiança. Repare, não estou a dizer que não houvesse motivos para estarem contra algumas coisas que tenha feito. Estou a referir-me à forma como se manifestaram em 2020, fiquei espantada, pensei que estivéssemos mais maduros enquanto sociedade”.
“Sim, sou a Graça”
É inevitável que a nossa conversa termine novamente com o tema da pandemia. Foi há pouco tempo e foi avassalador. Olhando para trás, quando lhe pergunto pelo que mais a marcou pela negativa, diz: “A vertigem dos dias, a velocidade com que as coisas aconteciam. Era deitar-me de madrugada e quando acordava – o que eu tinha dado como certo, na hora em que me tinha deitado, com o que tinha lido, com o que tinha ouvido, com o que tinha discutido com os meus colegas –, já estava a ser ultrapassado por uma nova teoria, por um novo artigo, por uma nova opinião. Isto foi perfeitamente assustador. Era não ter o chão parado, era um chão em movimento e essa foi a sensação mais difícil. Sou médica, venho da ciência e estava habituada à ciência que tem o seu tempo, dos ensaios clínicos, dos estudos que são interpretados, pensados, revistos pelos pares e só depois publicados. Ali havia uma luta contra o tempo. No entanto, tive sempre a preocupação de não angustiar mais as pessoas. Foi esse o primado que aprendi e foi o que apliquei.” O momento mais gratificante que ficou desses tempos, esse, Graça Freitas recorda-o com muito carinho: “Estava a passear a pé, junto ao rio, sozinha, quando apanhei com uma bola na perna. Olho para o lado e atrás da bola vem um menino com uns 6-7 anos. Ele pára, olha para mim e diz ‘és a Graça!’. Eu confirmei e pensei que ele fosse dizer qualquer coisa desagradável, mas diz-me com um ar luminoso, mostrando-me o braço: ‘Eu estou vacinado!’ Foi um momento áureo da minha carreira como diretora, foi uma criança ter-me reconhecido, ter-me tratado pelo meu nome, e depois ter dito orgulhosamente ‘eu estou vacinado’.”