Graça Freitas nos Prémios ACTIVA Mulheres Inspiradoras 2023 onde foi homenageada com o Prémio Carreira
(fotos: João Lima)

Foi um dos rostos que entrou, diariamente, nas nossas casas durante os tempos difíceis de combate à covid-19. Apesar do clima de tensão e medo perante o desconhecido que se vivia então, das dificuldades e das pressões a que foi sujeita, nunca a vimos zangada. Aliás, acredito que a calma da então Diretora-Geral da Saúde, durante esses longos meses, deve ter apaziguado a ansiedade de muitos que aguardavam os diários da pandemia.

De África a Lisboa
Maria da Graça Gregório de Freitas, de seu nome completo, nasceu em Angola, mais concretamente no Huambo, a 26 de agosto de 1957. Foi ali que viveu uma infância feliz, “as memórias que guardo são de uma imensa liberdade. Acho que isso é comum a todas as pessoas que estiveram em África. Éramos meninos e meninas que brincávamos na rua, podíamos ir para casa com os joelhos esfolados e com a roupa suja sem problemas de maior. Recordo essa liberdade, de um mundo mais arejado da minha infância em África, porque vi a diferença que foi quando vim para a terceira classe aqui na metrópole, como se chamava na altura”. Como o trabalho do seu pai, que era funcionário público, obrigava a família a mudar de casa com alguma frequência, decidiu-se que a pequena Graça teria de passar a viver com as tias e frequentar um colégio. Assim, dos 8 aos 16 anos, Graça Freitas viveu o seu quotidiano longe dos pais, só se juntando a eles em vésperas de ir para a Faculdade, que ficava em Luanda. Na hora de optar por um curso superior, Medicina não ficou em primeiro lugar, “escolho a área de Ciências, porque era nela que me revia a trabalhar, mas pensava em seguir Arquitetura ou Engenharia e Silvicultura, ou qualquer coisa ligada à terra, mas acabei por seguir Medicina, influenciada pelas minhas amigas e o meu pai”. Frequentou o primeiro ano do curso de Medicina em Luanda e no final de 1975, devido às lutas pela independência das ex-colónias portuguesas, a família é obrigada a vir para Portugal, tendo Graça Freitas prosseguido os estudos na Faculdade de Medicina de Lisboa, após a realização de exames.

Ao longo de mais de 40 anos de dedicação à Saúde Pública, tive sempre o contributo de várias pessoas com quem trabalhei. Não fiz este caminho sozinha.”

O primeiro dia do resto da sua vida
Se ao princípio foi convencida, muito rapidamente a escolha veio a revelar-se acertada porque se identificou de imediato com os princípios da Saúde Pública. “Não me lembro exatamente o momento em que senti que tinha feito a escolha certa. Lembro-me da circunstância que me fez optar pela especialidade em Saúde Pública. Foi um colega, ligeiramente mais velho, mais informado que eu, que me conseguiu transmitir a ideia de que numa relação clínica ia tratar de um doente de cada vez, mas que se fizesse coisas para uma população, numa determinada comunidade, eu podia melhorar a vida de todas aquelas pessoas. Esse foi um momento importantíssimo. Foi quando percebi que poderia ter uma carreira a exercer medicina dessa forma, e passou a ser natural.”

A pensar no bem comum
Depois da licenciatura, começa então a frequentar a especialidade em Saúde Pública e a trabalhar numa carreira que durou mais de 40 anos e terminou em 2022, como Diretora-Geral da Saúde e Autoridade de Saúde Nacional, depois de ter sido subdiretora-geral, presidente da Comissão Técnica de Vacinação, coordenadora do Plano Nacional de Vacinação, estado na coordenação e direção dos serviços de prevenção e controlo da doença, em diferentes programas de promoção da saúde pública e lecionado na Faculdade de Medicina 25 anos. Um currículo extenso, pleno de competências que a levou ao topo da carreira como Diretora-Geral da Saúde e durante o qual teve um enorme desafio pela frente: gerir a resposta de saúde pública nacional a uma pandemia causada por um vírus novo, de origem desconhecida, que se espalhou pelo mundo inteiro fazendo milhões de vítimas. Um trabalho que não lhe deu tréguas, dia e noite, durante três anos.Termina a sua carreira com mais de 40 anos no serviço público em 2022 e é condecorada, a 17 de janeiro de 2023, com o grau de Grã-Cruz da Ordem do Mérito pelo Presidente da República portuguesa, Marcelo de Rebelo de Sousa.

Vida com história
Muitos foram os profissionais que deixaram marca na sua memória e Graça Freitas fez questão de referir alguns: “Como aluna, o professor de neurologia, Lobo Antunes, mais tarde, em Santa Maria, um chefe de cirurgia, o dr. João Borregana, que era um homem com um sentido de integridade e justiça incríveis, foi talvez a pessoa que mais me ensinou aquilo que é o primado da medicina, não fazer mal e depois tentar sempre fazer o bem, não desassossegar as pessoas, não angustiar mais do que já estão. Mais tarde, o professor Constantino Sakellarides, que tinha sido meu professor e foi meu Diretor-Geral, um homem muito à frente do seu tempo. Também não posso deixar de mencionar a pessoa de quem fui subdiretora durante 12 anos, Francisco George, e a mulher absolutamente extraordinária, que era subdiretora na área da gestão, de quem era muito amiga, Catarina Senna Fernandes, que morreu com cancro da mama durante a pandemia. E há muitos mais, tive uma sorte incrível de ir conhecendo muitas pessoas a quem estou muito grata.”

Graça Freitas. Mulheres Inspiradoras ACTIVA 2023. Prémios ACTIVA Mulheres Inspiradoras 2023

Muitas das pregadeiras que levava para os diretos da pandemia eram gentilmente feitas por pessoas que as enviavam para a sede. Fiquei muito sensibilizada por aqueles gestos”.

Ainda há preconceito
A uma mulher que durante muitos anos esteve em cargos de topo, é natural que se pergunte se alguma vez se sentiu discriminada pelo seu género. A ex-Diretora-Geral da Saúde começa por lembrar uma discriminação positiva, a do seu pai, e de como ele reforçou a ideia de que ela tinha de estudar para ser independente e seguir a carreira que desejasse. Pela negativa, “na pandemia, houve determinadas alturas em que senti discriminação por ser mulher. Surpreendeu-me bastante ver que, para algumas pessoas, ser mulher era um motivo de maior escrutínio, arrogância e desconfiança. Repare, não estou a dizer que não houvesse motivos para estarem contra algumas coisas que tenha feito. Estou a referir-me à forma como se manifestaram em 2020, fiquei espantada, pensei que estivéssemos mais maduros enquanto sociedade”.

Sim, sou a Graça”
É inevitável que a nossa conversa termine novamente com o tema da pandemia. Foi há pouco tempo e foi avassalador. Olhando para trás, quando lhe pergunto pelo que mais a marcou pela negativa, diz: “A vertigem dos dias, a velocidade com que as coisas aconteciam. Era deitar-me de madrugada e quando acordava – o que eu tinha dado como certo, na hora em que me tinha deitado, com o que tinha lido, com o que tinha ouvido, com o que tinha discutido com os meus colegas –, já estava a ser ultrapassado por uma nova teoria, por um novo artigo, por uma nova opinião. Isto foi perfeitamente assustador. Era não ter o chão parado, era um chão em movimento e essa foi a sensação mais difícil. Sou médica, venho da ciência e estava habituada à ciência que tem o seu tempo, dos ensaios clínicos, dos estudos que são interpretados, pensados, revistos pelos pares e só depois publicados. Ali havia uma luta contra o tempo. No entanto, tive sempre a preocupação de não angustiar mais as pessoas. Foi esse o primado que aprendi e foi o que apliquei.” O momento mais gratificante que ficou desses tempos, esse, Graça Freitas recorda-o com muito carinho: “Estava a passear a pé, junto ao rio, sozinha, quando apanhei com uma bola na perna. Olho para o lado e atrás da bola vem um menino com uns 6-7 anos. Ele pára, olha para mim e diz ‘és a Graça!’. Eu confirmei e pensei que ele fosse dizer qualquer coisa desagradável, mas diz-me com um ar luminoso, mostrando-me o braço: ‘Eu estou vacinado!’ Foi um momento áureo da minha carreira como diretora, foi uma criança ter-me reconhecido, ter-me tratado pelo meu nome, e depois ter dito orgulhosamente ‘eu estou vacinado’.”

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