Eram 10h da manhã quando Pacheco Pereira e alguns dos voluntários da Ephemera abriram as portas de um dos armazéns do Ephemera no Barreiro. Já tinha visto imagens, sabia o que continha, não estava à espera da dimensão e da variedade de objetos. “Todos os dias há pessoas a fazerem doações”, diz-nos o historiador enquanto nos fazia uma breve visita guiada ao espaço. Muitos livros, em diferentes línguas e temáticas, panfletos, revistas, cartazes de campanhas eleitorais, mas também vestidos de noiva, postais, caixas e caixas com fotos de família (tema de uma exposição em preparação), taças, medalhas, galhardetes, gadgets políticos humorísticos, uma bandeira da guerra civil espanhola, uns desgastados sapatos de um guerrilheiro da Luar… Impossível não ficar encantada com esta ‘caixa’ gigante de memórias e o seu incansável fundador.
Começo por lhe pedir para nos dizer o que é o Ephemera.
O arquivo Ephemera é uma associação cultural considerada de utilidade pública que gere essencialmente uma biblioteca e um arquivo privados. Inclui livros, arquivos propriamente ditos, documentos, manuscritos, fotografias, cartazes, praticamente todo este tipo de produtos e objetos. No fundo, faz um continuum entre biblioteca, arquivo e museu.
A maioria das coisas entra por doação, embora eu próprio também faça muitas compras. O nosso problema resulta do nosso sucesso que é a dimensão que nos obriga a um certo grau de dispersão. Temos 2 armazéns do Barreiro, outro armazém em Santa Iria da Azóia, 6 casas na Vila da Marmeleira e há armazéns dispersos nos pontos de recolha em todo o país… São 6km de estantes!
Recebem muitos objetos de família?
Sim, aqui guardamos quer os arquivos do Estado, que são deitados fora, quer os arquivos pessoais. Quando morrem as pessoas mais velhas, os filhos não têm espaço nem condições para manter as bibliotecas ou papéis. Nós recolhemos tudo. Mesmo de associações populares, recreativas, clubes desportivos que estão neste momento a ser expulsos das suas sedes por este processo de gentrificação. O objetivo primeiro de Ephemera é salvar, é tornar as coisas menos efémeras.
Também vai ter um polo em Arroios, em Lisboa?
Sim, já está a ser organizado, na zona do Mercado Forno do Tijolo, e aí vai servir para voluntários trabalharem alguns núcleos, como a fotografia. Nós temos dezenas de milhares de fotografias.
A maior parte são livros?
Temos praticamente de tudo, 250 mil a 300 mil títulos de livros, centenas de milhares de panfletos. É também um arquivo internacional. Temos coisas de cerca de 100 países. Claro que há países dos quais temos um pin… Mas há países em que temos muito boas coleções: Estados Unidos, Espanha, França, Noruega, Suécia, Finlândia, Alemanha. Angola, Moçambique.
Não lhe perguntam porque querem tanta ‘tralha’?
Sim, mas queremos imenso essa ‘tralha’ porque o tempo dá-lhe contexto. Imagine o que era se tivéssemos as inscrições na Primeira República. O valor que isso tinha. Eu consegui recolher uma na porta de uma prisão onde estiveram anarquistas, coisas que eles rasparam na porta, portanto, aquela porta é uma cápsula do tempo.
“No Ephemera, nem eu nem os voluntários temos um minuto de aborrecimento. Estamos sempre a descobrir coisas fabulosas.”
São sobretudo coisas do século XX e XXI?
O grosso é do século XX, mas, por exemplo, temos dois grandes arquivos do século XIX, manuscritos, originais, correspondência, um do General Sousa Brandão, um republicano muito ativo, engenheiro militar e um dos homens responsáveis por fazer os caminhos de ferro no tempo da Fontes Pereira de Melo. E temos outro do Primeiro-Ministro Serpa Pimentel. Aqui , nem eu nem os voluntários temos um minuto de aborrecimento. Estamos sempre a descobrir coisas fabulosas.
São quantos voluntários?
Em todo o país são 150. Somos a única organização em Portugal, o único arquivo em Portugal com capacidade de cobrir as eleições autárquicas. Isto quer dizer que, em 2021, houve qualquer coisa como 8000 campanhas diferentes e, pelos cálculos que fizemos, terão sido produzidos cerca de 100.000 produtos analógicos, nós temos 60 mil.
E os voluntários são todos reformados?
Não, temos operários que trabalham, temos estudantes, profissionais no ativo e reformados. A maioria são reformados, são os que têm mais tempo. E para nós é importante ter desde operários a bancários reformados, porque trazem experiências de vida diferentes que olham para as coisas de forma diferente. Temos ali uma faixa que diz, “dos Césares e dos cozinheiros”, inspirado num poema de Bertolt Brecht , chamado ‘Perguntas de um operário letrado’.
Aqui valoriza-se outro tipo de materiais…
Sim, conseguimos dar valor a quase tudo. Há coisas que os arquivos tradicionais não pegam e depois arrependem-se. Por exemplo, temos um arquivo de um boxeur que já morreu. É interessante para a história do boxe, mas sobretudo porque é o boxe anterior às empresas de segurança, em que os boxeurs eram voluntários, gente muito pobre, de pequenos clubes populares. Isto dá-nos uma janela sobre a vida que não se conhece, que não chega aos jornais, das pessoas ‘de baixo’, digamos assim, de modistas, costureiras, operários ferroviários, uma janela das pessoas que não ficam na história e isso dá-nos uma possibilidade de fazemos exposições com materiais que as pessoas se espantam.
Quando é que começou esta sua paixão por colecionar tudo?
Eu vivi sempre numa biblioteca. Venho de uma família antiga, do Porto, que há 3 gerações compram muitos livros e jornais. Era uma das mais ricas do século XIX e ficou sem nada no início do séc. XX. Tinha muitas propriedades e poucos rendimentos e portanto despacharam uma série de coisas, mas nunca venderam um livro, portanto a parte antiga da biblioteca tem coisas preciosíssimas. O meu avô comprava um tipo de livros, o meu pai comprava outro e eu devia ter uns 14 anos quando comecei a comprar os meus primeiros livros. E consegui negociar com a minha mãe e passar do andar de cima para a cave onde estava a biblioteca, para ela não me mandar desligar a luz e ir dormir. (risos)
Mais tarde, com o envolvimento na atividade política, comecei a guardar outro tipo de coisas. A dada altura, por responsabilidade de um nosso amigo da Figueira da Foz, Provedor da Misericórdia, começou a oferecer umas coisas dele e isto foi crescendo.
“Gosto muito da citação de Orwell que está ali fora num muro: ‘Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado’.”
E por que veio para o Barreiro?
Houve uma oportunidade de encontrar aqui um armazém.
Julgava que tinha a ver com a crónica que escreveu há uns anos sobre o Barreiro…
Não necessariamente, mas o nosso trabalho tem a ver com isso e estar aqui no Barreiro também nos dá uma janela para um conjunto de pessoas e experiências. Por exemplo, nós temos um grande arquivo de um ferroviário, serralheiro na CP, comunista, preso político, esperantista e fascinado pela conquista do espaço da União Soviética. Isso era uma coisa que só no Barreiro se encontra. Ele tinha uma cabeça fantástica, e o Barreiro tinha uma cultura operária, uma grande concentração de operários que queriam ilustrar-se, aprender, ver teatro, e isso criou uma cultura que tem muitos aspetos de autodidatismo.
Do que recebeu, o que tem sido mais importante?
É muito difícil responder a isso. Talvez os grandes espólios de Sá Carneiro, Vítor Crespo, do Sousa e Castro, os dois espólios do século XIX, uma série de documentos de uma família luso-alsaciana… Só no ano de 2022 entraram mais de 200 espólios, alguns são apenas uma pasta, mas outros têm 15 metros. Neste momento, estamos a recolher o espólio de um militante da Luar, o dos sapatos que lhe mostrei, onde ele guardava uma serra entre a palmilha e a sola, para o caso de ser apanhado e poder serrar as grades. Temos também um aparelho de falsificações da Luar, aquela mala com muito mau aspeto tem os carimbos que eles usavam para falsificar documentos… Temos um arquivo muito relevante sobre a medicina de guerra em Angola, outro do teatro que a Ana Zannati nos ofereceu, de sindicatos que fecharam, da família Ferro Rodrigues, um enorme arquivo fotográfico de famílias em Angola.
E qual foi o mais surpreendente ou insólito?
Talvez o do boxeur, e o arquivo de uma farmácia do início do século. Aqui encontramos publicidade a elixires de longa vida, o uso do hipnotismo como método de anestesia. Já na fase do Estado novo, encontrámos circulares da pide a dizer às farmácias que não eram permitidos fazer tratamentos em pessoas que tivessem sido feridas numa manifestação.
Há arquivos que se transformam num sucesso editorial…
Está a referir-se ao ‘Amorzinho’, um livro que é a correspondência entre uma modista e um empregado de escritório. É muito interessante, não só porque é sobre a vida dos ‘de baixo’, percebemos a que bailes é que ela vai, as cenas de ciúmes – ela chama-o de amorzinho mas quando se zanga é ‘excelentíssimo senhor’ – mas também tem muitos pormenores sobre a vida sexual, sobre o problema do aborto, sobre a relação com a virgindade. É o nosso maior sucesso editorial, já tem 5 edições…
Eu digo isto sem qualquer arrogância, nós sabemos coisas sobre a vida dos portugueses que ninguém sabe, e por isso é que também não há um momento de aborrecimento.
Se estiver aqui tempo suficiente, vai ver que acontecem duas coisas, carros a chegar com coisas e pessoas a dizer “aaaah” quando abrem uma caixa e vê uma coisa particularmente interessante.
Qual é a importância da memória e para a sua população?
É muito simples, “quem controla o passado, controla o presente, quem controla o presente, controla o futuro”, que é uma variante da frase de George Orwell que nós temos aqui num muro no fim da rua. A memória é uma coisa intrinsecamente política no sentido da pólis, a maneira como as pessoas viveram e vivem, a maneira como as pessoas foram tratadas pelos governos, a esperança que lhes é permitido ter, tudo isso está aqui e tudo isso faz parte da memória. A memória é também um local de luta política. Quando vêm aqui ministros e o Presidente da República, eu às vezes, mostro-lhes coisas incómodas. Por exemplo, teve aqui o António Costa que, como o Presidente da República, são membros do Ephemera, e o que é que eu pus em exposição? Um cartaz que dizia assim, ‘PS, partido marxista’. (risos)
Quando fizemos uma exposição dos 40 anos do 25 de Abril na Assembleia da República, pusemos em frente da sala do CDS uma série de cartazes do CDS de 75-76 com pobres, mendigos nas ruas, e eles não acreditavam que aquilo fosse verdadeiro. Era tão verdadeiro que quando começaram a colar os cartazes começaram a ter problemas. Um dos cartazes tinha uma pedinte sem pernas. Aquilo provocou uma reação tão negativa que eles deixaram de colar os cartazes. Se isto fosse um filme de terror, presumo que as coisas aqui à noite falavam… até uma cabeça humana nós temos ali.
Uma cabeça humana?!
Veio no espólio da farmácia que falei há pouco. Os índios brasileiros eram caçadores de cabeças, quando apanhavam um inimigo, cortavam-lhe a cabeça, tiravam os ossos da cabeça, coziam a cabeça com um produto especial e usavam-na como troféu. E nos anos 20 eram vendidos como uma espécie de gadgets na Europa.
“Quem vive num mundo que sempre teve liberdade não sabe o que é não a ter. É das coisas mais difíceis de explicar.”
Diz que é um soldado da memória e uma das suas missões é ir às escolas a falar da nossa história. Há uns dias escreveu uma crónica sobre isso no jornal ‘Público’…
O público das escolas do ensino secundário é do pior que há. Acho que já falei para milhares de miúdos com 15-17 anos, tudo pendurado no telemóvel. O primeiro objetivo é calá-los e desviá-los do telefone e uma das formas que uso é mostrar os sapatos do operacional da Luar. Depois explico o que são os sapatos e o que era o 24 de Abril. Às vezes digo-lhes, ‘tu não podias usar isto, tu não podias estar aqui com um rapaz ao lado’, e eles começam a mostrar interesse. Depois falo-lhes do que era a tortura do sono e a tortura da estátua. Peço sempre um voluntário para ser torturado e depois há sempre um silêncio mais pesado. Significa que é um sucesso.
É falta de memória que eles têm?
Não, é viver noutro mundo. Quem vive num mundo que teve sempre liberdade não sabe o que é não a ter. É das coisas mais difíceis de explicar. Como explicar como era viver num país em que, durante 48 anos, as pessoas nunca leram um jornal que não fosse censurado, não podiam estar mais de 3 ou 4 pessoas juntas porque era considerada uma manifestação, nunca podiam protestar? A gente normalmente fala da censura política, mas a censura vai muito para além do político. A censura abrange as questões do sexo, do erotismo, abrange as questões das mulheres. Há despachos da censura cuja única objeção que tem contra o livro é ser escrito numa mulher. Uma mulher era suposta ser dona de casa, não escrevia livros.
Agora têm uma exposição sobre a censura no Estado Novo, não é?
Sim, que vale muito a pena ver. Está em Oeiras. É uma exposição não sobre os aspetos propriamente políticos da censura, mas sobre a defesa do ‘respeitinho’. E essa defesa do respeitinho aplicava-se aos árbitros de futebol, porque eram autoridade do jogo, aplicava-se ao padre, ao regedor, a todas as figuras que estavam no topo da hierarquia social. Uma censura que se exerceu durante 48 anos, e que teve muitos efeitos na cabeça das pessoas. Como estes miúdos sempre viveram em liberdade não sabem o que é não ter. Também lhes explico que liberdade e democracia não é a mesma coisa. A democracia é um processo, é uma escolha volitiva, a liberdade é uma coisa que a gente sabe quando tem ou não tem.
Muitos alunos deixam de ter História a partir do 9.º ano, e na televisão temos apenas o ‘Visita Guiada’, que é ótimo, mas não será pouco?
Nas escolas é um problema, em primeiro lugar, dos pais, que são muito conservadores e que, às vezes, têm uma interferência nos conteúdos que é inaceitável. É um problema dos professores que em alguns casos são iguais aos alunos, em relação aos telemóveis e redes sociais, e é depois um problema de crianças e adolescentes que vivem num mundo essencialmente rápido, de onde é muito difícil ter silêncio, é muito difícil pensar, é muito difícil argumentar. Porque é um mundo patológico, num certo sentido dominado pelas emoções e não pela racionalidade. Portanto, tudo isto conjugado é um enorme obstáculo. Tem de haver imaginação, têm de os provocar, tem de se fazer diferente. Pelo menos ficam com uma ideia de que as coisas não eram fáceis.
Conta-lhes histórias?
Sim, por exemplo, conto-lhes a história da libertação dos presos políticos. Que não foi fácil. Primeiro, o Spínola só queria libertar os que não tinham crimes de sangue. Os outros recusaram-se a sair se não saíssem todos. E há um pequeno grupo que queria ficar. Por que é que os trabalhadores rurais alentejanos não queriam sair logo? Queriam bater na GNR, porque tinham contas para ajustar com a GNR. Depois lá os convenceram a sair e não houve nada. Esses presos, assim que entravam na carrinha da GNR eram logo espancados. Outro tipo de presos, de um modo geral, eram torturados ou espancados se resistissem já na sede da polícia, nas prisões.
“Vamos ter um polo em Arroios para aí trabalhar as dezenas de milhares de fotografias fantásticas que temos.”
Acha que os portugueses têm memória selectiva ou memória curta?
Têm memória curta porque é o mecanismo atual, é um mecanismo da comunicação social, por exemplo, não aguenta um tema uma semana, perde novidade tem de meter outro, independentemente do valor dos temas. Por exemplo, nós fizemos no país 46 exposições. A imprensa local dá muita importância às exposições mas não estão os principais jornais. Tudo isto condiciona a memória. É o que vende e não vende, é o que dá ou não dá audiências. Ou então aquilo que é politicamente correto e o que não é politicamente correto.
Não temos memória seletiva?
Claro que sim e que é condicionada por estes mecanismos. Há muitos exemplos.
Às vezes para falar da pobreza em Portugal eu digo que nós devíamos ter a memória que em Portugal, nos anos 50 e nos anos 60, havia campanhas contra o pé descalço.
Porquê? Uma parte importante da população portuguesa não tinha sapatos. E isso, por exemplo, devia fazer parte da nossa memória coletiva. Para a gente perceber o que mudou, para não dizer asneiras sobre a relevância do que mudou.
Na escola primária que frequentei, lembro-me de ver colegas que viviam nas ilhas no Porto, que era uma forma de habitação operária, e não tinham sapatos. A regra era o pé descalço, portanto, há muita memória do nosso passado que é reconstruída.
Querem que esqueçamos a miséria que havia durante o Estado Novo?
Há por aí uns pseudo historiadores que resolveram dizer que no período do Estado Novo a economia crescia. Havia um ‘pequeno’ problema com as liberdades, mas a economia crescia. Sim, crescia à custa da exploração colonial, crescia à custa da repressão aos sindicatos. É um bocado aquele argumento a favor do Mussolini. Um dos argumentos do fascismo italiano era ‘pela primeira vez, os comboios chegavam a horas’. Nós temos uma variante também dos comboios chegarem a horas. E é evidente que essas coisas só podem ser ditas, esquecendo seletivamente muitas outras..
Qual é a sua memória mais antiga?
Estar em casa da minha família, em Gouviães, perto do Lamego, e ver os bancos de granito em cada lado da janela.
E a memória mais chocante?
Há uma, muito significativa, de antes do 25 de abril. Eu já andava envolvido na luta política, ia num troleicarro no Porto, e começou um conflito entre um passageiro e o motorista. Todos estavam a favor do motorista. A dada altura o passageiro tira o crachá da Pide, prende o motorista e manda as pessoas saírem do autocarro. O que me impressionou é que ninguém protestou. Medo, essa é uma memória forte que eu tenho. As pessoas podiam não ser politicamente muito ativas, mas o medo era transversal a toda a gente.
Como é que gostaria de ser lembrado?
Verdadeiramente, não quero saber. Nunca pensei nisso. Tenho muita dificuldade em dizer, se calhar ‘Um homem que passou a vida nos papéis e a andar aos papéis’. (risos)