Quando chegou a casa trazia nos ouvidos o som das palavras do médico, falando-lhe como se estivesse diante de uma criança, numa linguagem cheia de diminutivos, como se os anos a mais implicassem discernimento a menos.
Não conhecia o médico de lado nenhum.
"Uma sumidade" tinha garantido o filho, "a Vera trabalha com ele e diz que melhor não há."
Ela não precisava de médico nenhum, mas a neta, depois de ter passado uma semana lá em casa, foi dizer aos pais que a avó não devia andar bem, levantava-se todas as noites às 4 da manhã, metia-se na cozinha, ficava lá sentada sem fazer nada, e só voltava a deitar-se muito tempo depois.
"E faz isto sem falhar um dia", garantia Cláudia, queixando-se de acordar sempre com a luz da cozinha a entrar-lhe pelo quarto.
O filho encolheu os ombros, manias de velha, mas a nora tinha logo atirado com a sua experiência de hospital, avançando com mil doenças possíveis, Allzheimer à cabeça da lista, evidentemente, e o filho acabara por marcar a consulta.
Ela teve vontade de sorrir, e de explicar muitas coisas ao filho, que muito cedo saíra de casa, primeiro para estudar longe, depois para trabalhar longe, finalmente para fazer família longe-e só agora regressara, como um estranho que de repente lhe batesse à porta.
Mas não disse nada.
Que sabem eles dela? Ou aquele médico que nunca lhe ouviu as queixas, não sabe se tem tensão alta ou baixa, se alguma vez foi operada, se é alérgica a alguma coisa?
Deixa-se ficar sentada, olhando para todos os velhos retratos que a rodeiam, muitos deles já com os contornos mal definidos.
O do pai, por exemplo, tirado numa data que já não recorda, mas há-de recordar sempre que foi nesse dia que ele lhe deu uma bofetada, a única em toda a sua vida, mas que ainda hoje sente na cara, quando ela lhe dissera "vou ser bailarina".
Foi também por essa altura que o pai saiu de casa.
E havia meses em que se esquecia de mandar dinheiro, e a mãe a não saber que fazer à vida, e ela a não querer desistir do sonho.
Mas viver, com sonhos ou sem eles, era desporto muito caro..
As duas arregaçaram as mangas e fizeram pela vida.
Ainda hoje sente o frio das madrugadas em que saía para o mercado às 4 da manhã, e a pressa em voltar a casa para ajudar a mãe na cozinha ,e depois meter tudo na cesta e ir entregar aos restaurantes– antes de seguir para o Conservatório.
Um dia, vinha carregada com a cesta quando deu de caras com um dos professores, a regressar decerto de alguma festa.
Nunca há-de esquecer o olhar de espanto, misturado de desprezo, que ele lhe lançou.
Chorou a manhã toda e nunca mais voltou às aulas.
Quando a mãe morreu, continuou ela a fazer o seu trabalho, carregando com a cesta às 4 da manhã até ao mercado, e regressando para cozinhar tudo e entregar tudo, anos e anos a fio– até ao dia em que casou e o marido, com uma voz muito parecida com a do pai, determinou "mulher minha não trabalha."
Levanta-se do sofá e vai ligar ao filho a dizer-lhe que não esteja em cuidados, o médico não viu nada de estranho.
Depois vai deitar-se. Não tarda são 4 da manhã-e o ritual, como sempre, tem de se cumprir.