
O Reino Unido tornou-se o primeiro país europeu a ultrapassar as 30 mil mortes relacionadas com a COVID-19. Até ao momento da publicação deste artigo, o boletim mais recente apontava para um total de 30,076 vítimas mortais em hospitais, lares e na comunidade em geral, depois de testarem positivo para o novo coronavírus. Um número que coloca o país à frente da Itália, numa ‘corrida’ que ninguém quer ganhar.
Rudolphe Cabral vive em Londres há quatro anos, trabalha em Data & Analytics numa empresa multinacional e é partner na FS-360. Assistiu de perto a todas as fases de combate à pandemia, começando pela polémica estratégia de imunidade de grupo, que valeu duros comentários de desaprovação ao governo e à sua principal figura, Boris Johnson. E não só. O Executivo britânico também tem sido muito criticado pela falta de testes e por não fornecer quantidades adequadas de equipamento de proteção individual aos profissionais de saúde na linha da frente do combate à pandemia.
Contudo, a voz do jovem não se junta necessariamente às muitas que expressam descontentamento. Na sua opinião, é importante ter em conta a realidade do país, com especial foco no caso da capital inglesa. “Em grandes metrópoles, como Londres, que por si só tem a mesma população que Portugal e num espaço muito mais concentrado, é muito difícil evitar a proliferação rápida desde tipo de casos”, afirma.

Que medidas de distanciamento social estão em vigor em Inglaterra?
Todo o país está em “lockdown” desde 20 de março. Apenas os negócios considerados essenciais, como farmácias, supermercados e entregas, entre outros, continuam a operar. Os restantes têm os seus funcionários em trabalho remoto, quando possível. A população pode sair de casa uma vez por dia, para fazer exercício, e não são permitidos encontros com mais de duas pessoas que não vivam na mesma casa.
Consideras que tem sido feito um bom trabalho no combate ao surto pandémico?
A estratégia inicial do governo foi tentar a imunidade de grupo, na qual grande parte da população contrairia o vírus, criando assim um nível suficiente de anticorpos. No entanto, com o rápido aumento do número de casos, tiveram de alterar a estratégia e entrar em “lockdown”. A opinião pública é que o governo foi lento a reagir. A minha opinião é que estão a fazer um bom trabalho no combate à COVID-19 e que o seu objetivo principal de atrasar o pico da pandemia até o sistema de saúde estar preparado foi alcançado.
Como é que os ingleses estão a encarar a situação?
No geral, as pessoas parecem estar a respeitar as medidas do governo e, na minha pequena amostra, estão a encarar esta situação com otimismo, na medida do possível. No entanto, já se nota uma certa impaciência para que o governo defina e comunique a estratégia de saída do “lockdown” e regresso à normalidade, se é que se pode usar este termo.
“Iniciei o isolamento uma semana antes de a medida ter sido oficializada pelo governo britânico”.

No teu caso, é possível estar em regime de teletrabalho?
Sim, felizmente, tenho a oportunidade de trabalhar a partir de casa. Apesar de já trabalhar remotamente com muita frequência antes da pandemia, fazê-lo durante tanto tempo consecutivo é muito desafiante. As videochamadas atenuam muito a falta de contacto humano e, além disso, acaba-se por se estar constantemente disponível em todos os canais de comunicação, o que é bastante cansativo.
Os dias tendem a ser mais longos e com menos pausas, e acabo por ter uma sensação de cansaço muito maior. No lado positivo, as pessoas parecem estar muito mais solidárias e compreensivas.
Como é ter de sair de casa, em Londres, em tempos de isolamento?
Eu saio apenas para a fazer uma caminhada diária e para ir supermercado (a cada duas semanas). Inicialmente, foi muito difícil conseguir comprar as coisas essenciais, mas agora já está normalizado.
Nas caminhadas, as pessoas têm respeitado o distanciamento de pelo menos dois metros e, em alguns casos, chegam mesmo a atravessar a rua. É uma sensação estranha, sem dúvida.
As idas ao supermercado são, sem dúvida, stressantes por causa de todos os cuidados exigidos: ter que utilizar luvas, evitar as pessoas, tocar apenas no estritamente necessário e garantir que o cartão bancário é desinfetado no final – parece que é nessas circunstâncias que nos apetece tocar mais na cara [risos].
“Em casa, o maior desafio é chegar a acordo sobre o que é ‘suficiente’ no que toca a ver as notícias sobre a COVID-19”.
Como é que tu e a tua noiva estão a viver a quarentena?
A nossa experiência tem sido muito positiva, porque finalmente temos a oportunidade de passar mais tempo juntos. Temos conseguido equilibrar muito bem os momentos em conjunto e o espaço pessoal. Por incrível que pareça, ainda temos a sensação de ‘não haver tempo para nada’.
Qual foi o impacto da pandemia na tua rotina?
A minha caminhada diária para o trabalho passou de 20 minutos para 30 segundos, o que tem impacto principalmente no final do dia, quando já não tenho aquele período de desconexão entre o escritório e casa. A prática de desporto foi substituída por caminhadas de uma hora por dia e a música ao vivo deu lugar a performances online, que, felizmente, têm sido bastante frequentes – obrigado a todos os artistas que continuam a criar neste período difícil.
Mais do que nunca, temos à nossa disposição uma quantidade interminável de conteúdo online, desde exposições de arte, formações online gratuitas, artigos, etc.
Do que mais sentes falta neste momento?
De longe, poder jogar basquetebol e viajar. Já não me recordo da última vez que fiquei tantos meses consecutivos na mesma cidade.
Que lição está a aprender com o isolamento?
A nível positivo, este período está a mostrar que certas barreiras físicas podem ser ultrapassadas com a tecnologia. Coisas simples como, por exemplo, marcar presença num aniversário por vídeo. Apesar de já estar disponível há anos, antes não nos ocorria que a impossibilidade de estar fisicamente presente não implicava perder o momento de cantar os parabéns a alguém próximo.
A nível negativo, esta crise mostrou-nos o quão frágeis as sociedades são e que não é preciso muito para chegar a um estado de pânico, em que cada um age como se estivesse sozinho (pessoas a esvaziarem as prateleiras de supermercados); há vários atos de ódio por ignorância (chineses discriminados um pouco por todo o mundo e africanos vítimas de racismo e de xenofobia na China); e reina a desinformação em países considerados desenvolvidos (a queda abrupta das vendas da cerveja Corona). De sublinhar, também, a falta de resposta das organizações internacionais, das quais se espera uma voz muito mais activa nestas situações (Nações Unidas, União Europeia, entre outras).