Rua de São Nicolau, 13. Verifiquei no Google Maps a localização precisa e meti os pés ao caminho e cheguei ao meu destino: Home Lisbon Hostel. Era naquele espaço que a minha entrevistada, Isabel Mesquita, mais conhecida como Mamma Isabel (pronunciar com sotaque italiano, por favor), cozinhava, de segunda a sexta, umas belas e bem portuguesas refeições aos hóspedes do hostel que os seus filhos, Bernardo e André, gerem desde 2006. Esses jantares, partilhados por convivas dos quatro cantos do mundo, ficaram famosos, trouxeram prémios internacionais (Best Hostel in the World de 2013 a 2017) e atraíram ainda mais jovens e menos jovens, solitários, grupos e famílias. Foi esse espírito de partilha que viemos conhecer.
Boas recordações
Ao subir pelas escadas de madeira em caracol, deparei-me com o luminoso ‘The Only Way is Up’ e não só segui as indicações como o aroma a canela e maçã. Assim que abri a porta do Hostel, fui inundada de recordações de outros tempos. A música ambiente, o som do riso e das conversas em inglês de pessoas que acabaram de se conhecer, o movimento frenético de quem está de partida, mas também dos que chegam com as malas de viagem, os beijos de despedida, os ‘hello, welcome, where are you from?”. Reconheci imediatamente toda aquela alegria, sede de aventura e descoberta, porque há muitos anos também fiz dos hostels a minha casa temporária nas viagens com dinheiro contado. Nunca me hei de esquecer dos pequenos almoços fartos do hostel em Munique, nunca tinha visto tanta variedade de pão, queijos e charcutaria na minha vida; ou da escassez do hostel em Zagreb (naquela altura, ainda existia uma Jugoslávia e estávamos em vésperas de uma guerra civil sangrenta); ou da alegria das conversas no hostel de Florença. No entanto, em nenhum deles havia uma Mamma que nos fazia o jantar, nem mesmo em Itália.
Bem-vindo, welcome, bienvenue, willkommen
Enquanto esperava por Isabel, fui visitar o espaço e sentir o ambiente. Logo na sala de estar/bar pode ver-se escrito num azulejo ‘Bem-vindo quem vier por bem’. As conversas cruzam-se enquanto se pede uma bebida, há salas onde se trabalha ou se conversa pelo computador, uma salinha com um teclado, outra com uma guitarra, cadeiras, sofás de vários tamanhos, poltronas, vasos com plantas. Muitas entradas e saídas, muitas conversas animadas. Uma porta dá para a camarata das raparigas, para a qual só se entra se for hóspede e mulher. Vou depois dar à cozinha, que a esta hora está vazia e é só visitada por quem quer lavar a sua louça – ‘quem suja, lava’ é a política interna –, e depois, como num labirinto, dou com uma sala gigante, com uma mesa muito comprida, com bancos corridos, que fazem lembrar os filmes italianos quando toda a família se junta à refeição e as conversas se cruzam tal como os pratos. É aqui que se fazem os famosos jantares da Mamma Isabel. Nas paredes bordeaux daquela sala (e de outras também) veem-se muitas fotografias penduradas – venho a saber mais tarde que são da família de Isabel –, e muitas cartas, em inglês e francês, de antigos hóspedes australianos, canadianos, suíços, franceses, holandeses, que escrevem a agradecer o acolhimento, os dias felizes que ali passaram, os jantares deliciosos que partilharam com novos amigos. E estou neste espírito meio nostálgico quando chega Isabel com dois grandes sacos de compras. Está na hora de tirar as fotografias e da nossa entrevista, entre fotos vai metendo conversa com quem chega, “Hello, how are you?”, e ouço os ‘filhos-hóspedes’ dizer, várias vezes em surdina, “Mamma is a celebrity”.
Do Porto para Lisboa
Isabel nasceu no Porto, na Foz, em 1946, e ali viveu com os seus nove irmãos, o pai e a mãe. “Nos dias de festa, era um corrupio lá em casa, só nós éramos 11, depois vinham os padrinhos, as madrinhas, os tios e primos… era uma casa cheia. E eu gostava muito de ajudar na cozinha, na altura tínhamos uma cozinheira e eu ia sempre espreitar o que ela estava a fazer. Lembro-me que era mínima quando me ofereceram um trem de cozinha, que adorava, e já ia fazendo um arroz ou sopa, copiava a cozinheira, seguia os seus conselhos.” Não seguiu, no entanto, esta sua paixão que encarava como um hobby. Fez o liceu no Porto e aos 20 anos veio para Lisboa estudar terapia ocupacional em Alcoitão. Encontrou o amor na capital, casou-se e teve os seus filhos, e continuou a fazer carreira no Centro de Saúde Mental Infantil que depois integrou o Hospital da Estefânia, até ao dia em que se reformou. “Só que os meus filhos sabiam que não sou pessoa para ficar em casa, sou muito ativa, sempre pensei que quando me reformasse tinha de fazer alguma coisa para me entreter, ou fazia voluntariado ou bolos para fora, aproveitando assim este meu gosto por cozinhar. Só que o meu filho André teve a ideia de eu vir para aqui. Na altura tinham o hostel há pouco tempo e desafiaram-me a vir experimentar fazer os jantares. Ao princípio, os jantares eram muito reduzidos, no máximo para 23 pessoas –hoje é o dobro –, mas eu nunca tinha cozinhado assim para quem não fosse da família ou amigos.” Os primeiros jantares foram servidos naquilo que hoje é o bar. Quando alugaram o segundo andar do lado esquerdo é que fizeram obras para comunicar os dois apartamentos e instalaram a mesa gigante. É então que começam a chamá-la de Mamma Isabel.
O Home Lisbon Hostel começou em 2006 apenas com o quarto andar direito, com pouco mais que 20 camas, e depois foram expandindo, à medida que os outros andares foram vagando. “Hoje, temos 150 camas. Já é um tamanho considerável. Temos quartos individuais, quartos com 4, 6 e 8 camas, temos alas onde só dormem rapazes, e alas onde só dormem raparigas. Temos muitos jovens, mas na casa dos 30 anos, e temos vindo a reparar que há pessoas cada vez mais velhas, a viajar sozinhas, em casal ou em família. Há dias recebemos uma família belga de seis pessoas que veio visitar um filho que estuda cá. Jantaram várias vezes connosco. Mas não é obrigatório! Eu faço o menu na noite anterior, é enviado para as pessoas e quem quer jantar inscreve-se no dia a seguir numa folha que é colocada ali ao pé do bar.”
“Adoro falar com eles, conhecer um pouco das suas histórias e dos seus países. Já viu as cartas que nos enviam?”
Jantar entre 2 dedos de conversa
Isabel faz o jantar de segunda a sexta e, apesar de saber quantos se inscrevem, faz sempre um pouco a mais para quem aparece de surpresa. “Nestes anos todos tenho aprendido a gerir o meu esforço. Agora tenho a vida mais facilitada, já não carrego as compras, encomendamos online, só faço as de última hora, e tenho duas ajudantes na cozinha. Também fizemos obras na cozinha. Antes, tinha de partilhar o fogão, porque como eles podem cozinhar às tantas era uma confusão eu estar com os meus tachos e panelas no meio dos matulões (risos) a cozinharem. Agora, tenho o meu fogão e eles têm o deles, mas conversamos enquanto preparamos as refeições. Eles gostam de saber como se faz uma refeição portuguesa, aliás, muitos inscrevem-se para provarem porque eu faço o que é típico. Outros porque estão cá sozinhos e querem conhecer pessoas novas, saem da mesa com amigos para a vida e sentem-se menos sós. Este hostel foi pensado para ser como uma casa de família enorme. Por isso, faço sempre questão de os receber, de trocar dois dedos de conversa se lhes apetecer, porque é o que acontece em nossa casa quando recebemos um convidado.
Quando viemos para aqui, estava tudo decrépito, pintámos e decorámos ao nosso gosto, daí termos muitos quadros e fotografias de família nas paredes, o piano e a guitarra… queremos que se sintam em casa. Acho que foi este ambiente especial que conseguimos criar que nos garantiu durante vários anos o prémio de melhor hostel do mundo. E o engraçado é que temos muitos repetentes, quando voltam a Lisboa ficam aqui e dão-nos como referência a amigos. Já estamos na época baixa mas ainda hoje tentei ver se conseguíamos alojamento para uma rapariga que nos ligou, mas estamos cheios.”
“Em 2006, já reformada, os meus filhos perguntaram se não queria vir fazer os jantares aqui no hostel. E eu vim.”
Histórias e vidas partilhadas
Dezassete anos de convívio, de amizades, de conversas e confissões, de risos partilhados que teve apenas um interregno, durante a pandemia covid 19. “Foi um período muito crítico, porque tivemos de continuar a pagar todas as despesas, inclusive a renda. O que nos aliviou foram alguns nómadas digitais, tínhamos cerca de 60 aqui a viver. É óbvio que nessa altura os jantares diminuíram muito, eram eles que cozinhavam as suas refeições. É engraçado que antes da pandemia tínhamos muitos hóspedes asiáticos, coreanos e japoneses, e depois diminuíram bastante, agora temos muitos americanos, canadianos, australianos… gosto imenso dos australianos, são muito extrovertidos, comunicativos e com uma cabeça muito aberta, os canadianos também são bastante simpáticos e educados. De vez em quando aparecem por cá estreantes. (risos) Já tivemos um miúdo amoroso da Mauritânia, muito simpático e falava muito bem inglês. Adoro falar com eles, conhecer um pouco das suas histórias e dos seus países. Já viu as cartas que nos enviam? Colocamos em molduras e penduramos na parede. De vez em quando regressam e é uma alegria. Há uns meses veio cá um canadiano e trouxe a mulher dele, conheceram-se aqui em Lisboa, no hostel, começaram a namorar e casaram. Trouxeram-me um presente, fiquei muito feliz por eles. Estas histórias felizes enchem sempre o coração. Depois há outras, menos, que nos afetam bastante. Há uns anos, tivemos um rapaz francês que tinha dificuldade em socializar com os outros miúdos. Um dia adoeceu e teve de ser internado no Hospital de São José. Ninguém da família veio visitá-lo, por isso fui eu, todos os dias até ele sair.”
No dia e véspera de Natal não costumam ter muita gente, mas ainda assim a Mamma Isabel deixa as refeições preparadas. “Faço questão de fazer um bacalhau para a noite de natal e peru para o almoço de natal. O que faria para tornar o nosso hostel ainda mais especial? Não sei, acho que já o é, temos um ponto forte que é o ambiente que aqui se cria, estão em casa. Isso é uma característica especial. Eles não vêm só para dormir, é o estar, o jantar com a Mamma, a comida caseira, o ponto de encontro, de partilha e de comunhão… e agora precisamos tanto disso, não é?” Terminámos a nossa conversa e a Mamma lá foi para a cozinha preparar o jantar: peru assado no forno com legumes para mais de 50 comensais que aguardavam ansiosamente pelo momento. A nós, da ACTIVA, ficou o convite para nos juntarmos ao ritual num destes dias. Combinado!