
Há quem tenha tudo e não tenha sonhos. Há quem nasça com nada e o sonho lhe comande a vida. Maria da Conceição nasceu em Vila Franca de Xira, em 1977, mas passou a infância em Avanca. Tinha 2 anos quando a mãe a levou até àquela localidade, na procura de trabalho juntamente com o seu companheiro. Ficaram uns dias em casa de uma familiar deste, Maria Cristina – refugiada angolana e viúva de um retornado português –, que vivia numa casa modesta, perto de um pinhal, com os seus seis filhos. Como não arranjaram emprego, o casal pediu a Cristina para tomar conta da menina durante umas semanas, até organizarem a sua vida. Cristina aceitou logo, mas as semanas deram lugar a meses… e eles não voltaram mais. “A minha mãe adotiva vivia com grandes dificuldades, fazia limpezas para sustentar a família mas não hesitou em ficar comigo, ela dizia sempre ‘onde comem seis comem sete’.” Maria tem boas recordações da sua infância passada ao ar livre, a brincar com os filhos mais novos de Cristina. E cresceu a pensar que aquela era a sua família biológica. Só quando foi para a escola é que percebeu que não, pois os outros miúdos chamaram a atenção para algo a que ela nunca tinha dado importância: a cor da pele dela era mais clara. Às vezes as crianças são cruéis, e faziam questão de a provocar até chorar. Não fosse este bullying e Maria até tinha gostado de andar na escola, pois adorava ler e escrever.

SEM CHÃO
Sete anos passaram desde que começou a viver com Cristina quando a sua vida levou um enorme abanão: a mãe adotiva sofreu um ataque cardíaco fulminante aos 50 anos. “Foi um choque terrível, tinha 9 anos, e lembro-me que fiquei sem chão. As minhas irmãs mais velhas tomaram conta de mim durante um ano, mas era difícil pois tinham acabado de começar as suas próprias famílias, por isso decidiram que o melhor para mim era ir para um colégio interno em Sintra continuar os estudos. Mas tive muita dificuldade em adaptar-me, sentia falta da minha liberdade, e no fim acabei por ser expulsa por ter tirado chocolates a outras raparigas. Acho que interpretei mal o mantra de Cristina, ela partilhava o pouco que tinha e eu devo ter pensado que podia comer os chocolates delas, só que elas não pensavam assim.” Voltou a viver com as irmãs adotivas mais velhas mas deixou os estudos no 5.º ano, e este é um dos grandes arrependimentos da sua vida. “Aos 12 anos, com pouca escolaridade, disseram-me que não ia conseguir fazer mais nada na vida a não ser trabalhar nas limpezas. E eu acreditei, mas também pensei: mesmo que o seja, irei ser o Ronaldo das limpezas.” Até aos 18 anos ocupou o seu tempo com tarefas domésticas e depois decidiu sair de casa para se tornar independente.
TRABALHO NON-STOP
Primeiro passo: arranjar um emprego. Maria respondeu a vários anúncios num jornal, mas houve um que lhe chamou a atenção pois era para assistente de um mágico que dava espetáculos em Itália. Ingénua, respondeu ao anúncio e foi contratada, só que o trabalho não era aquele que esperava e desviou a rota para a Suíça, onde trabalhou longas horas em limpezas e na restauração durante 3 anos. Foram anos de muita solidão, por isso, aos 22, resolve voltar a Portugal e procurar a sua mãe biológica. Encontra-a num lar, envelhecida e sem qualquer memória de Maria, o que a deixa desolada. “Não sabia que ela estava naquela instituição desde os 40 anos porque tinha um problema grave de memória devido a um traumatismo craniano. Foi por essa altura que descobri que tinha 7 irmãos biológicos e que todos tinham crescido com famílias diferentes, separados uns dos outros. Pus na cabeça que iria encontrá-los e fazer uma reunião. Levei algum tempo, mas consegui e foi uma grande emoção.” Voltou para a Suíça, de coração cheio, mas a vida volta a trocar-lhe as voltas quando é atropelada por um automóvel e tem de ser levada para o hospital. Ali recebe a visita da polícia que lhe diz que, como está ilegal, tem de sair do país, “mas foram simpáticos, aconselharam-me a aprender inglês e a regressar para estudar hotelaria. E assim foi, parti para Inglaterra, para Bournemouth, onde arranjei vários trabalhos rapidamente. Trabalhava de manhã à noite e aprendia inglês ao mesmo tempo. Cheguei a trabalhar num cinema para poder ver os filmes à borla e melhorar o meu inglês”. Já com um bom nível de inglês, Maria pensou voltar à Suíça para estudar hotelaria, mas não sem antes visitar Londres. E foi amor à primeira vista. Apaixonou-se pela capital inglesa, pelo ritmo, o movimento, e ali ficou a trabalhar. Tinha 25 anos quando se candidatou a um lugar na companhia aérea Emirates. Por falar fluentemente 3 línguas e com experiência na restauração, foi logo selecionada.
UM NOVO MUNDO
“A Emirates abriu-me as portas a um novo mundo. De trabalhar em bares, cafés e cinemas, e sei lá mais, fui para o luxuoso Dubai, com viagens pelo mundo ficando em hotéis de luxo. E apesar do estilo de vida ser formidável, tinha alguma dificuldade em sentir-me confortável no meio.” Estava a trabalhar na Emirates há ano e meio quando voou pela primeira vez para Daca, capital do Bangladesh, onde estava programada uma escala de 24h. Como sempre, fez planos para conhecer as gentes e locais. Só que o que ali viu marcou-a profundamente: crianças a mendigar nas ruas e uma pobreza chocante. “Julgava que sabia o que era ser pobre, mas aquilo era a um nível que nunca tinha visto. Ainda assim, nos olhos daquelas crianças havia uma luz, um enorme potencial.” Maria visitou ruas e ruelas, bem longe dos locais turísticos, e aquele nível de miséria incomodava-a. Voltou para o Dubai e, como fazia habitualmente, no regresso da viagem foi comprar uma embalagem de gelado… e logo pensou ‘com este dinheiro posso comprar 20kg de arroz em Daca’, e voltou para trás. Foi então que começou a pedir à sua rede de amigos e colegas que doassem roupa, lençóis, mantimentos… Cancelou a viagem do seu aniversário à Nova Zelândia para voltar a Daca e doar 100kg de material a 20 famílias de Korial, o pior e maior bairro de lata da capital bengali, onde vivem mais de 50 mil pessoas em barracões amontoados no lixo.
OBJETIVO: AJUDAR
Durante anos conciliou o trabalho como hospedeira e a angariação de bens de primeira necessidade para aquela população. Mas percebeu que precisavam de outras coisas e tentou convencer algumas famílias a pôr os filhos na escola para lhes dar um futuro melhor, pagando as propinas, mas não foi bem recebida. “Levei muito tempo até ganhar a confiança das pessoas, julgavam que havia segundas intenções. Aos poucos lá ia obtendo a autorização de uns pais que deixavam os seus filhos ir para uma escola em Gawair. Lembro-me que um dia quis premiar os bons estudantes com uma ida ao parque de diversões. Os miúdos ficaram entusiasmados, mas depois ninguém apareceu porque corria o rumor que eles iam ser usados para tráfico de órgãos. Não foi fácil.” Depois teve de lidar com o preconceito de professores e outros alunos para com aquelas crianças e decidiu angariar dinheiro para construir uma escola, com todas as infraestruturas necessárias de apoio. O seu empenho e garra iam passando de boca em boca, e no Dubai várias pessoas foram ajudando a angariar fundos. Ao acumular objetivos, acumulava também muito trabalho. “Andava cada vez mais exausta, trabalhava 24/7 e estava sempre a beber Red Bull para me aguentar. Em 2010, senti que já não podia fazer as duas coisas e deixei o trabalho na Emirates para me dedicar a 100% às crianças de Daca e criei a Fundação Maria Cristina (MCF, mariacristinafoundation.org), em honra da minha mãe adotiva. É um motivo de orgulho termos ajudado mais de 600 miúdos a fazerem toda a escolaridade e alguns até estão na universidade, mas passámos por muitas dificuldades durante a crise financeira. De repente, os patrocinadores deixaram de enviar dinheiro e eu tinha de manter aqueles miúdos todos na escola. Foi então que googlei ‘como arranjar patrocinadores para solidariedade’ e só via eventos desportivos. Pronto, se era ali que estavam os patrocínios, era para ali que eu ia.”
DESPORTO A QUANTO OBRIGAS
Mas Maria nunca tinha feito desporto a sério na vida, “nem estava em forma, por isso tratei de me pôr em forma”. Com a ajuda de um amigo PT começou os treinos. O objetivo? Subir ao monte Kilimanjaro, ‘só’ a montanha mais alta de África com 5895m de altitude. E conseguiu-o em 2011. Como era preciso dar a conhecer ao mundo a MCF, seguiram-se outros eventos desportivos em que se pôs à prova. Só em 2012 participou numa expedição ao Polo Norte (a primeira portuguesa a fazê-lo) e no desafio 7 maratonas em 7 dias nos Emirados Árabes Unidos. O seu objetivo seguinte assustou os amigos: subir ao Evereste. Tentaram dissuadi-la, mas estava decidida. Preparou-se afincadamente e não é que em 2013 se tornou a primeira portuguesa no cume da montanha mais alta do mundo? Depois disso, continuou a conquistar títulos e recordes do Guinness em maratonas, ultramaratonas e nas provas Ironman nos diferentes continentes. “São os meus estudantes que me movem, não foi fácil, mas eu estava preparada para fazer tudo a fim de angariar o dinheiro necessário para eles não voltarem para Korial e tornarem-se escravos ou noivas crianças.” Com a covid, angariar fundos tornou-se difícil, mas nada impede Maria de continuar o seu trabalho na Fundação Maria Cristina, embora neste momento tenha sido obrigada a desacelerar porque está a recuperar de uma operação a um joelho. “Toda a vida ouvi que ia ser uma mulher de limpezas. Assim que percebi que as pessoas estavam enganadas nunca mais parei de trabalhar para conseguir atingir objetivos. Mesmo no meu trabalho em solidariedade e nos desafios desportivos, muitas vezes ouvia, ‘não consegues, vais falhar’, e eu focava-me no objetivo. Se me deixasse ir pelo que algumas pessoas dizem não tinha conquistado nada.” O que aqui contei é só mesmo a pontinha do icebergue do trabalho e empenho de Maria, as adversidades que teve, e tem, de ultrapassar para ajudar famílias pobres em Daca. Termino com a sugestão de leitura do seu livro ‘Uma Mulher no Topo do Mundo’, que conta a sua história de vida com pormenor. Aposto que vai ficar rendida à sua força interior, como nós aqui, na ACTIVA, ficámos. Maria da Conceição: 100% inspiradora!
