Nasceu em Angola, em 1969, e tem algumas memórias idílicas que diz não ter a certeza se são reais ou das fotografias e histórias que lhe contaram. Recorda-se de brincar no jardim da vivenda onde a família vivia, de correr descalça mas também de ouvir os tiros de uma guerra à porta de casa e dormir no corredor com os pais e irmãos. Em 1975, com seis anos, voltam para Portugal. Primeiro vieram para uma aldeia no Ribatejo, de onde o seu pai era natural, uns meses mais tarde para Santarém e, finalmente, um ano depois, fixaram-se em Oeiras. O contraste da ex-colónia com a metrópole ficou-lhe na memória, sobretudo o choque de ver as mulheres vestidas de preto e de lenço na cabeça. Lembra-se do antagonismo aos retornados e de ouvir ‘não fales com ela que é retornada’. Comentários que não fizeram mossa até porque nem sabia o que significavam. Dona do seu nariz e refilona – palavras suas – sonhou ser Primeira-Ministra com a certeza de que tomaria decisões firmes sempre que fosse preciso. A mãe era bióloga, o pai, geólogo, o irmão foi para Medicina mas ela preferia a Matemática. Na universidade, optou por Economia, um curso em que as sinergias dos números se misturam com as atividades humanas. A curiosidade e a vontade de estudar alimentaram o espírito inquieto e hoje é diretora-executiva do Instituto para as Políticas Públicas e Sociais do ISCTE. Venha daí ‘ouvir’ uma conversa empolgante.
Como é de Economia vai para Políticas Públicas?
Entrei na Universidade Nova em Economia. Findo o curso, fui para Inglaterra fazer um mestrado e trabalhei uns tempos por lá em análise de projetos. Depois fui mãe, professora de inglês, tive centros de apoio escolar… Quando a minha filha mais velha foi para Oxford estudar e a mais nova estava no 10.º ano, decidi voltar para a faculdade. Tinha 43 anos e fui fazer uma pós-graduação em análise de dados. Como trabalho de fim de curso resolvi pegar nas bases de dados do PISA (Programme for International School Assessment) que são gigantescas e ninguém estava a pegar naquilo. Ora, num evento cruzei-me com o David Justino, que na altura era Presidente do Conselho Nacional de Educação, e disse-lhe o que estava a fazer e decidiu-se que se devia lançar uma análise extensiva, regular, dos resultados PISA.
PISA é o quê?
É um programa internacional de avaliação de estudantes gerido pela OCDE, que se realiza de 3 em 3 anos e testa miúdos de 15 anos de muitos países. No fundo, é um estudo internacional que pretende ver se estão preparados para a vida adulta. Também fazem questionários de contexto para perceber o estatuto socioeconómico dos miúdos, a motivação, as horas de estudo e as ambições. É uma bateria de perguntas que fazem aos alunos, aos pais, aos diretores das escolas e agora também aos professores.
Um superestudo! E não se avaliava os dados?
Para Portugal, não. O objetivo máximo destas análises de dados é informar as políticas públicas de cada país, é ver dados para poder haver estratégias mais bem direcionadas para os problemas.
E agora o que faz a Isabel?
Em 2014 inscrevi-me no doutoramento de Políticas Públicas e terminei-o em 2018. Depois fui convidada pela minha orientadora para ser diretora do Instituto das Políticas Públicas e Sociais, e aqui estou a fazer a ponte entre o conhecimento de base científica e as políticas públicas, entre a universidade, a administração pública e os cargos eleitos.
E esse conhecimento está a ser posto em prática?
(Suspiro) Eu acho que as sementes ficam. Há uma grande iliteracia a nível do que é fazer políticas públicas. Acho que os nossos governos, e não é este em específico, estão mal ancorados em gabinetes de estudo e de apoio, e o staff que dá apoio político é pouco e não tem as competências completas para os cargos que ocupa. Mas isto é um problema transversal a todos os países. A política é uma coisa rápida e a investigação é uma coisa lenta. Muitas vezes é necessário tomar decisões sem haver espaço para que a evidência esteja toda reunida. Inglaterra será talvez o melhor exemplo de um país que tem bons gabinetes e é uma desgraça. É um caminho que estamos a construir e que vai demorar muitos anos.
“Chumbar é uma coisa do fascismo, uma herança da qual ainda não nos conseguimos libertar.”
Em 1974, tínhamos uma taxa de alfabetização baixíssima. Como tem sido a evolução?
O ensino português é uma história de sucesso. Todos temos de aplaudir e deixar de dizer mal. A história do ensino em Portugal parte de níveis atrozes de analfabetismo em 1974, para os dias de hoje, com 50% da população dos jovens a entrar na universidade. 50 anos depois do 25 de abril! Temos mais jovens na universidade do que a média dos países da OCDE. É fantástico.
Qual era a percentagem de entradas na universidade em 1974?
Uns 3%. E os que não vão para a universidade estão a terminar o secundário. Muitos deles nas vias profissionalizantes, outros nos cursos científico-humanísticos, mas têm uma formação já sólida. Agora, temos muito pouco abandono escolar, cerca de 5%, em 2010 era 40%.
Agora diz-se que há facilitismo, passam todos…
Ai gosto tanto desse tema! (risos) Vamos lá ver uma coisa: chumbar um aluno não é um sinal de sucesso ou de insucesso. Chumbar um aluno fazia sentido porque a escola servia de filtro para a universidade e mais nada. A escola não tinha outro objetivo, os alunos que chateavam, levavam um ‘chuto no rabo’ para sair rapidamente do sistema. Daí o abandono. Quantas vezes se ouvia dizer ‘o seu filho não tem jeito para a escola. Vá lá arranjar-lhe uma profissão qualquer’. E chumbava-se os miúdos. Nós já não estamos nessa escola, felizmente, mas muita gente ainda não percebeu.
Em que escola estamos agora?
Numa que tem por obrigação manter todas as crianças e jovens até aos 18 anos e ensinar-lhes qualquer coisa. Chumbar não tem interesse nenhum. Nem todos aprendemos ao mesmo ritmo, nem as mesmas coisas da mesma maneira. E ainda bem, se bom aluno era ser bom a música e a ginástica, eu não tinha passado da escola primária. Felizmente para mim, a matemática era valorizada, se fossem outras competências, a minha história seria diferente.O objetivo da escola é ensinar, ajudar os miúdos a crescer, a encontrar as capacidades, que todos temos. Chumbar é repetir tudo outra vez, só que pior, no fim da sala, com o rótulo na testa a dizer burro. É contraproducente e caro, cada aluno custa perto de 6 mil euros ao erário público. Há inúmeros estudos que mostram que só se deve chumbar um aluno em situações muito específicas, normalmente os meninos ricos que andam a preguiçar, os que têm tudo e não querem nada. Cerca de 90-95% dos miúdos não beneficiam do chumbo. As mudanças estruturais levam tempo, é perceber que há outras ferramentas para consertar o insucesso, mais baratas e mais úteis.
Que outras ferramentas são essas?
Explicações, tutorias, apoio por pares, visitas de estudo, clubes das mais diferentes coisas, campos de férias, apoios específicos para a leitura, para a matemática, ginástica ou para o que for que a pessoa tem dificuldades. Chumbar é uma coisa do fascismo, uma herança da qual nós ainda não nos conseguimos libertar. Não tem a ver com facilitismo. Não tem nada a ver com o ‘agora toda a gente passa sem saber nada’. As pessoas têm todas que passar e é responsabilidade da escola que todos aprendam. O que acontece é: tu entras numa turma, tens um programa qualquer, os professores explicam aquilo, uns percebem e outros não. Os que percebem, muito bem, os que não percebem, paciência. A escola está a falhar em ajudar os que não percebem. Felizmente há muitas escolas a utilizarem estas ferramentas novas. Há estudos internacionais que mostram uma coisa ótima que se podia fazer e que custa zero: os programas de mentoria em que alunos mais velhos ensinam os mais novos. Custam zero e fazem bem a todos. Os mais velhos tornam-se mais responsáveis e os mais novos têm alguém que os ajuda a evoluir. São ótimos programas, testadíssimos em Inglaterra.
Fala de Inglaterra, e não da Finlândia que é sempre o modelo que dão em educação.
A Finlândia é um bom exemplo, mas falo em Inglaterra porque estudam as coisas cientificamente, fazem experiências. E aí sabemos se funcionou ou não. Já a Finlândia é um sistema que tem bons resultados, mas é demasiado diferente do que temos aqui. Os finlandeses têm uma sociedade muito mais educada. No final do séc. XIX, todos os finlandeses já tinham secundário, hoje 100% dos pais têm educação avançada. Nós ainda temos uma percentagem grande de pais com menos do 9.º ano.
É outro campeonato…
A Finlândia uniu-se em torno do sistema de educação, fez reformas, algumas das quais sou apologista, como criar professores com diferentes estatutos. Eles têm o professor titular, que é o equivalente aos nossos professores, o professor assistente, o professor tutor…
No ensino secundário?
Sim, têm o professor titular mas pode haver 2-3 professores assistentes, que não têm turmas. Os professores não são todos iguais e nem têm todos o mesmo papel, e faz sentido num quadro cujo objetivo é ajudar alunos. Mas estas ideias não são aceites por muita gente.
A sociedade continua a não valorizar
os cursos profissionais, o que é terrível…
Temos muita dificuldade em nos libertar das heranças do fascismo. É um estigma que está na cabeça das pessoas. Nós temos 40% dos alunos do ensino secundário nas vias profissionais. É um estigma que tende a ser transversal a muitos países, excepto nos da Europa Central, que fazem um bom trabalho.
Que países da Europa Central?
Alemanha, Polónia, República Checa, Dinamarca… Nós temos uma economia baseada em salários muito baixos. Antigamente havia poucos licenciados, pagava-se mais a quem tinha um grau académico maior. Portanto, esta coisa de que o meu filho tem de ser doutor para ganhar mais é uma bacoquice de país pobre.
“A Finlândia é uma realidade muito diferente da nossa. No final do séc. XIX já todos os finlandeses tinham o secundário.”
Este ano houve mais gente a optar por cursos superiores na via de ensino?
Sim, tiveram mais procura porque se sinalizou que vai haver necessidade de professores a médio prazo, e os miúdos respondem aos sinais do mercado.
Mas como é que há 10 anos se diziaque havia professores a mais e agora há falta?
Havia professores a mais e continuamos a ter.
Em determinadas áreas?
O que nós sempre tivemos, só que ninguém queria saber, é muita dificuldade em substituir professores que se ausentam, normalmente por doença. Quando o Ministério abre concursos de colocação anual, temos um excesso de professores a concorrer. Os concursos abrem, esgotam-se e fica muita gente de fora. Estes professores depois passam automaticamente para a Reserva de Recrutamento, onde são chamados para substituir ausências, e aqui é que a porca torce o rabo. Primeiro porque é um processo burocrático e lento. Um professor mete uma baixa, os médicos só passam baixas de 30 dias, que são ou não renováveis. O processo leva 3-4 semanas, e quando o professor finalmente foi colocado, o outro já chegou da baixa… ou não. E os alunos sem aulas. Segundo porque os professores que não são colocados no concurso anual têm de comer e por isso vão tentar arranjar outro trabalho e não estão disponíveis quando são chamados à Reserva de Recrutamento porque não sabem se vão substituir alguém por uma semana, 30 dias ou um ano, e eles precisam de um salário, como é óbvio.
Não vão largar um trabalho por uma incerteza!
E os professores que faltam de forma prolongada, geralmente, acumulam dois fatores: têm mais de 57 anos e uma doença crónica. São mais velhos e têm horários reduzidos, ou seja, o horário que vai a concurso é um horário reduzido, com salário reduzido. É um problema. Temos 10% de professores nesta situação a faltar mais de 30 dias.
Isso corresponde a quantos professores?
Cerca de 12 mil por ano. O nosso problema pode vir a ser alguma falta estrutural de professores em alguns grupos de recrutamento, não em todos, e em algumas regiões do país: Lisboa, Porto, Algarve, Setúbal… onde há crianças. Acontece que as casas são muito caras nesses sítios. Ou têm um contrato durante um ano inteiro, na tal colocação, ou é muito difícil sobreviver com um trabalho de tempo indeterminado com horário reduzido. Portanto, é um problema da legislação e da forma como as escolas estão organizadas. E isto é no ensino público, no ensino privado é ainda pior. Ainda ontem uma amiga me dizia que a filha, no ano anterior, teve 5 professoras de História.
Mas a ideia é que o ensino privado é o céu e o ensino público o inferno, não é?
Porque os privados não andam a dizer mal. É tudo uma questão de marketing e de posicionamento.
Pensava que no privado os professores não andavam a saltitar como no público…
Ainda saltitam mais porque os professores do privado ganham 20% a menos que os do Estado, na mesma categoria. Os professores do privado concorrem todos os anos para o Estado. Quando eu disse que os professores vão à sua vida, inclui os professores que aceitam um lugar no privado. Mas todos querem mudar! Esta ideia de que o meu filho entra no primeiro ano com um professor fantástico no privado e vai ficar, pode não ser assim, só se for no primeiro ciclo.O que acontece no privado e não acontece no Estado, é se um professor faltou um dia, alguém vai substituí-lo.
No ensino público não acontece porquê?
Voltando à Finlândia, penso que uma das soluções para isto era pensar que os professores não são todos iguais, e não há mal nenhum nisso. Os professores podem ter diferentes papéis na escola. Os que metem baixas é porque a doença acumulada à idade já não lhes permite estar na linha da frente numa sala de aula. Podiam fazer tutoria e mentoria aos colegas mais novos, atividades de dinamização da escola, dar apoio a um aluno com dificuldades.Terias os titulares e depois uma bateria de professores assistentes, cujo trabalho era assistir os colegas e substituir quem faltasse.
O que pensa dos rankings?
É o momento de publicidade do ensino privado que tem muito pouca utilidade. Como as escolas privadas não nos dão dados para estudar, nada do que possam dizer tem valor. Quando estudámos o PISA, emparelhámos os dados dos alunos do ensino público e do privado com as mesmas características socioeconómicas para ver os resultados. Eram iguais.
Mas há escolas públicas diferentes umas das outras…
Em Portugal, há segregação dentro da própria escola e entre escolas. Dentro do mesmo concelho tens os bairros dos pobres, dos ricos, e depois as escolas dos pobres e as dos ricos. Todos os concelhos urbanos são assim. E dentro das próprias escolas tens as turmas dos filhos dos professores e as turmas dos outros. Há imensa segregação por estatuto socioeconómico-cultural ou educacional. É um problema complexo de resolver por causa da distribuição espacial da nossa malha urbana.
Os cursos das Ciências Sociais estão desligadosdos mercados de trabalho?
Então?! Eu sou das Ciências Sociais! (risos) Acho que os mercados de trabalho vão dar uma volta e procurar mais estas áreas. A Google contratou antropólogos, a Inteligência Artificial vive a empregar linguistas. As empresas e muitos serviços públicos precisam cada vez mais de competências interdisciplinares, equipas com pessoas com perspectivas diferentes a pensar juntas.