
O caminho até à sala de aula onde fizemos a entrevista foi curto na distância mas prolongado no tempo. Neste pequeno percurso, Alexandra distribuiu abraços e beijos a professores, administrativos, auxiliares e alunos que vinham ter com ela, sempre de braços abertos. Não dá aulas no Liceu Camões este ano, mas ali tem uma imensa comunidade afetiva. A profissão de professor é das mais nobres e inspiradoras e os docentes como ela dão vontade de voltar aos bancos da escola.
Como é o princípio da tua história?
Tenho 45 anos, nasci em 79, numa aldeia do concelho de Águeda. Há aquela piada ‘podes sair da terra, mas a terra não sai de ti’, eu sou essa pessoa. Tive a vida que qualquer pessoa de uma aldeia pequena nos anos 80 poderia ter. Filha de pais trabalhadores, um pai muito inteligente, mas para o qual eu, ainda hoje, não tenho a certeza se sou um motivo de orgulho ou desilusão.
És filha única?
Não, tenho uma irmã mais nova. O meu pai tinha uma pequena empresa de construção, por isso tivemos uma vida financeiramente tranquila e deu-me a oportunidade de ir estudar para a Universidade em Coimbra.
Licenciaste-te em História…
Sim, toda a gente me dizia “com essas notas, vais para História? Podias ser advogada, psicóloga…”. Sempre soube que queria ser professora, inequivocamente.
Desde criança?
Quando somos pequenos brincamos muito aos professores, e eu sempre brinquei muito a sério ao ensinar e aprender.
E como foi a adaptação à nova vida em Coimbra?
Tive uma educação repressiva, um pai muito conservador, e quando vou para Coimbra, para uma casa com amigas, descobri a cidade como tinha de ser descoberta, mas sempre com o foco em ter bons resultados escolares.
Quando deste a tua primeira aula?
Foi a 11 de setembro de 2001. Inesquecível. Tinha 22 anos, a minha orientadora de estágio, uma fonte de inspiração e de saber, tinha-me dito “são do 7.º ano, tens de ter cuidado para não dar demasiada confiança”. A aula era após o almoço, e na sala dos professores havia uma televisão que estava a dar as primeiras imagens do ataque às Torres Gémeas, mas ainda não se tinha percebido bem o que estava a acontecer. Quando entrei na minha primeira sala de aula, com os meus alunos à frente, abri os braços e disse-lhes com um entusiasmo enorme: “Boa tarde, este é o dia mais feliz da minha vida! Vocês não imaginam como eu estou feliz por ser vossa professora!” (risos) A minha felicidade de estar ali a dar aulas foi mais forte que os conselhos da professora Angelina. Quando, no final desse ano, não fui colocada no concurso, e as coisas estavam, de facto, muito difíceis, foi um balde de água fria.
Não pudeste seguir o teu sonho?
Naquela altura, não. Agora já sou professora do quadro, mas não dei aulas durante muitos anos. Tive de abdicar de ser professora, porque isso implicava andar com a casa às costas, constantemente a mudar de cidade, e eu não queria isso. Depois, por razões de saúde, também não o poderia fazer. Sinto que durante muitos anos me foi roubada a possibilidade de exercer a função para a qual efetivamente eu nasci e fui talhada, porque, na escola, sinto-me como um peixe na água. Costumo dizer que não sou uma excepcional professora de História, tenho a plena consciência disso, mas sou uma excelente professora.
Então trabalhaste em quê?
Nunca deixei o mundo da educação, mas enveredei pela carreira de investigação. É um mundo interessante, mas é um trabalho solitário e não há esta frescura dos mais jovens. É muito importante termos contacto com os mais novos, conhecer os seus pontos de vista, saber as coisas que eles nos têm para dar. Quando voltei a entrar numa sala de aula como professora, foi uma enorme felicidade. Às vezes penso “ainda me pagam para isto”, vê-los crescer é mesmo um privilégio.

“A educação continua a ser o motor para a evolução humana.”
É uma profissão com muitos desafios…
Sem dúvida, infelizmente, ser professor nos dias de hoje não é só ensinar e aprender. Há toda a carga burocrática, questões ligadas com a carreira, por aí fora. Mas eu penso que isso é o menos importante. O mais importante é que a educação continua a ser o motor para a evolução humana. E eu posso ter esse papel na vida de alguém. É verdade que não consigo chegar a todos os alunos. Já tive anos a dar aulas a nove turmas, é impossível fazer um trabalho de proximidade com todos. Vai haver muitos que nunca vamos conseguir tocar. Mas em alguns casos vou conseguir construir com eles uma nova reflexão, um novo ponto de vista, uma nova aprendizagem. Não há nenhuma profissão que me pudessem oferecer, mesmo com um salário chorudo, capaz de me fazer abandonar a carreira de professor.
Quando soubeste que querias ir para História?
Tinha uns 14-15 anos. Tive uma ama, que veio a ser a minha madrinha de casamento, que foi estudar História na Universidade do Minho e um dia eu fui com ela. Achei o curso fascinante, “isto é que me faz pensar realmente sobre o mundo em que nós estamos, para onde é que vamos, de onde é que vimos, isto dá-me respostas a inquietações”.
Depois de anos dedicada à investigação, voltas à docência quando?
Só volto em 2018, quando começa a haver falta de professores. Entro no Maria Amália, onde sou agora professora.
Estás no Maria Amália desde 2018?
Não, houve um ano em que estive em três escolas. A vida de professor é feita destas coisas. Apesar de não ter assim muitos anos de serviço, já estive em 12-13 escolas e já dei muitas disciplinas, porque no meu grupo disciplinar podemos dar, além de História, Cidadania e Mundo Atual, dei aulas à noite de CLC (Cultura, Língua e Comunicação), área de integração, fui diretora de cursos, de turma… Todos os anos é uma aprendizagem. Estou, pela primeira vez, a dar aulas a um aluno cego, mais uma aprendizagem. Mas é disso que eu gosto. Só os desafios da direção de turma é que não gosto muito.
Ter de lidar com os pais…
Nem é tanto isso… é perceber como as famílias estão desestruturadas. O que respondes a uma mãe que te diz “eu avisei-a [filha], disse-lhe para hoje vir de fato de treino, prender o cabelo e não vir de brincos para poder andar à porrada”… Tens de explicar a uma adulta que a violência não é solução para nada? As famílias estão muito desestruturadas e os nossos jovens estão cada vez mais abandonados. Se eles passam muito tempo na escola, eu, enquanto membro da comunidade escolar, tenho de tentar contribuir para melhorar a situação. Porque se estive com eles no mesmo espaço e eu não vi que era vítima de violência doméstica, que não tinha o que comer, que há ali excesso de medicação, de drogas, falhei em alguma coisa.
Mas há muitas situações em que é difícil perceber.
Por isso tem de haver um trabalho de proximidade e não podes ter 9 turmas. Não podes ver os alunos uma vez por semana. Não podes ter processos burocráticos gigantescos para poder chegar à fala com um jovem que pede para simplesmente falar contigo e contar-te sobre o que o perturba. Não posso permitir que a escola faça de conta que não vê estas situações.

“Este pin foi-me oferecido pelos meus alunos.
Diz ‘Oh Mores’ porque é uma expressão que repito muitas vezes nas aulas.”
Por isso escreveste uma crónica no Observador sobre a capacitação emocional dos docentes?
Sim, porque realmente é preciso ter um certo arcaboiço e disponibilidade para ouvir, para tentar perceber o que está à nossa volta. Às vezes há sinais evidentes, e depois há a sensibilidade já treinada. Às vezes basta ouvir o que eles têm a dizer, saber o que é que fazem, quais são os temas que os preocupam. Quem nos capacita emocionalmente para chegar a uma aula e veres uma miúda que tem os braços cheios de pensos rápidos? Ou receber um email a avisar que um aluno foi hospitalizado porque tentou o suicídio? Ou está com marcas de pancada? Ou está a cair e se calhar não come há 2-3 dias? Ou porque não toma banho há vários dias, e sabe-se lá em que condições vive? Lidamos com realidades muito diferentes, algumas muito difíceis. Podes ter feito o melhor curso superior, nas melhores universidades, ter as melhores notas, nada te prepara para lidar com estas coisas todas ao mesmo tempo. Quando se tem 9 turmas, a possibilidade de encontrares vidas completamente devastadas é ainda maior. Vou fazer de conta que não me apercebo daquilo que vi? Não consigo.
Escrevi essa crónica na altura em que estavam muito preocupados com a capacitação digital dos docentes, para aprendermos a lidar com as plataformas x e y. Mas quem nos prepara emocionalmente para lidarmos no dia a dia com estas coisas? E quando pedes ajuda, só dizem “só tens que relevar, não podes levar isso para casa contigo”.
Não consegues seguir esse conselho?
Claro que não! Eu faço o que está ao meu alcance, “queres conversar, queres a minha opinião, queres ajuda? Posso falar com a psicóloga?” Eles vêm muito ter comigo e não é porque eu tenho um dom, é porque revelo essa disponibilidade para os ver e ouvir. Não me vou esquecer do que me disse uma das alunas, no arraial do final do ano lectivo. Estava a despedir-me dos alunos e a agradecer a colaboração no projeto do Cinema, e uma diz “sou eu que agradeço à professora e à professora Irene Resende por nos verem”. Isto significa que muitas vezes aquela aluna sente que não é vista. Tocou-me de tal forma que fiquei dois meses a remoer e a pensar quais seriam os alunos que eu não vi. Cada aluno na sua individualidade é uma pessoa e devia ser vista por cada professor, em todas as aulas.
E quando vês que conseguiste ajudar de alguma forma?
Como te disse, não há salário que pague isso.
Voltemos um pouco atrás, o que fizeste durante os 16 anos que não deste aulas?
Resumidamente, durante vários anos dei aulas numa universidade sénior, Tempo Livre, às minhas velhinhas maravilhosas, trabalhei na livraria Quarteto, fiz o mestrado, tive uma bolsa de investigação para o Centro de Estudos Sociais, estive em projetos de investigação, e depois consegui uma bolsa de doutoramento. Entretanto, em 2008, aos 28 anos, descubro que tenho cancro da mama. E aí suspendo a bolsa e fui tratar-me. Achava que a coisa não ia correr muito bem, porque o caso era feio, havia uma mutação genética, e fiz tratamentos um bocadinho duros.
A tua vida ficou em suspenso…
Tinha sonhos que nunca mais se cumpriram, a minha vida ficou virada do avesso. Como receio voltar a ficar doente, não faço planos.
Nem a curto prazo?
Planeio pequenas coisas, porque quando tinha os maiores planos da minha vida eles foram todos por água abaixo. Estava com uma bolsa de doutoramento, fazia investigação académica, tinha um companheiro, nunca quis ter filhos mas passou-me pela cabeça, porque gostava muito daquela pessoa e ele queria muito ser pai, mas quando descubro num curto espaço de tempo que tenho uma mutação genética e mesmo a doença, tudo isso muda.
“Costumo dizer que o teste genético ao cancro da mama salvou-me a vida.”
Porque fizeste o teste genético?
Foi a médica de família da minha mãe que lhe disse que as filhas deveriam fazer o teste. No ano em que a minha mãe estava a fazer o tratamento para o cancro, a minha tia morreu de cancro de mama. Fiz o teste e fico a saber que sou portadora da mutação genética BRCA. Costumo dizer que o teste genético salvou-me a vida porque quando vou fazer exames mais apertados, é então que descubro que tenho dois tumores malignos, um em cada mama. Eu já fazia mamografias desde os 23 anos por causa do cancro da minha avó, tia e mãe. Tinha feito uma em outubro e estava tudo bem. Seis meses depois faço o teste genético e logo a seguir descubro que tenho cancro. Se eu não tivesse feito o teste, não estava aqui para contar a história.
Tiveste de contar à tua mãe?
Sim, custou-me horrores. A minha mãe ainda estava a fazer o luto da irmã, a perceber se a doença dela estava estabilizada e fica a saber que a filha também tem cancro. Eu não podia esconder dos meus pais, precisava deles. Como achava que ia morrer, quis aproveitar a vida e esta levou uma reviravolta. Separei-me, saí da casa nova para a qual nos tínhamos mudado e comprado juntos… Mas depois conheci o Pedro, que é hoje o meu marido, o meu esteio.
Conheceste o teu atual marido depois do cancro?
Conheci o Pedro através do antigo Fórum Sons, do Público. Encontrámo-nos quando a Madonna vem a Lisboa tocar à Belavista, a seguir à minha última quimioterapia. Costumo dizer que o Pedro me conheceu careca e monoteta (risos) e foi-se ali gerando uma questão de aproximação que acabou num grande amor. Depois dos tratamentos, assumo a relação com o Pedro, retomo a investigação do doutoramento, fecho-me para começar a escrever e fico em depressão absoluta. Depois do cancro, dos tratamentos brutais, das loucuras, tens de lidar com o quotidiano… As minhas amigas estavam a ter filhos, e eu um cancro. Elas tinham a vida à frente, objetivos, projetos, e eu um cancro. As pessoas saíam de casa para ir trabalhar e eu ficava em casa a tentar descobrir na internet ‘quanto tempo é que se consegue viver depois do primeiro tumor?’. Houve uma altura que pensava que tinha metástases. Até exames aos calcanhares fiz porque tinha dores horrendas nos pés e comecei a pensar que tinha cancro nos ossos. Depois tive uma menopausa induzida, precoce, tudo isso tem impacto no funcionamento do teu corpo e da tua cabeça.
E profissionalmente, como estava a ser?
Fiz comunicações, publiquei papers, tive uma ação permanente no Centro de Estudos Sociais, e depois chamam-me do Media Lab do DN para montar o projeto de formação em literacia dos media, dou explicações, começo a escrever para algumas publicações sobre música para ir a concertos. Depois disso, vou para o grupo Porto Editora e achava que ia fazer recursos, pensar formação, que é o que eu gosto, mas o cargo tinha carga comercial muito forte para a qual sou uma nódoa. Despedi-me, decido voltar a dar aulas e inicio o ano letivo num colégio na margem sul. Em setembro, estou de coração cheio, o que eu gosto é disto. Quando estamos a fazer o plano anual de atividades, menciono o 25 de Abril e dizem-me, “aqui não se celebra o 25 de Abril, o dono é salazarista”.
Isso foi em que ano?
Em 2018. Chego a casa e digo ao Pedro que me vou despedir outra vez. Sempre ganhei miseravelmente, às vezes andava atrás das pessoas para me pagarem, sempre a recibos verdes. Mas depois sou colocada no liceu Maria Amália e dei aulas no estabelecimento prisional de Lisboa, que foi uma experiência incrível.
E como foi o regresso ao sonho?
Maravilhoso, tenho muita coisa para aprender, sou uma maçarica, mas inspiro-me muito em colegas, como a professora Irene Resende com quem almocei hoje, que amam aquilo que fazem e todos os dias querem aprender com os alunos.
Notas diferenças nos alunos de 2001 para os de 2024?
Noto mais ansiedade, mas é impossível não estar mais ansioso com o mundo como está. Lembro-me de ser miúda e ver o Artur Albarran na guerra do Iraque, na TV, à noite. Tu neste momento vives as guerras todas no scroll do teu telemóvel. Passas o dedo por cima de crianças mortas, é óbvio que te causa impacto! Como não ser mais ansioso numa sociedade em que tu não tens tempo para parar, ter uma conversa, não fazer nada? Quando tínhamos 15 anos, não passávamos a vida a pensar em entrar para a faculdade ou obcecados com exames. Não te diziam a toda a hora que tens de ser o melhor. O que tens de ser é melhor pessoa, devia haver prémios para quem é boa gente, e tu não consegues fazer entender a um miúdo e a muitos encarregados de educação, “olhe, o seu filho pode não entrar em medicina, mas ele tem aquilo que muitos médicos não têm, que é a ligação, a proximidade, o cuidado com o próximo”. O filho é magnífico, não é por não ter média para entrar em medicina que vai deixar de o ser. Como não ter ansiedade se tudo está baseado num exame que dura 120 minutos e que define eventualmente a tua vida ou a falta dela?
O que gostas menos de fazer?
De reuniões de professores e avaliar. Avaliar é penoso, ter de atribuir um número a uma pessoa e uma pessoa não pode ser um número. É a coisa mais redutora e injusta.
“Tenho muita esperança nesta geração: lidam com crises que não provocaram e ainda encontram força para lutar.”
Estamos a fazer esta entrevista no Liceu Camões, qual é a tua ligação com esta escola?
O ano passado fui colocada aqui, e foi tudo aquilo que diziam e mais além, portanto, integrei-me com muita facilidade. Tem uma direção fantástica, que promove uma escola aberta, sem muros, próxima com a Comunidade. Quando o João Jaime, o diretor, me convida para continuar com o fantástico projeto do Cinema à Segunda, aceitei logo e continuo a fazê-lo mesmo estando a dar aulas no Maria Amália. A ideia é que alunos, pais, amigos, a comunidade, venham ver cinema, que ainda por cima é gratuito. São os alunos que escrevem as folhas de sala e neste momento já nem conseguimos dar resposta às solicitações dos alunos para proporem e apresentarem filmes.
Esta geração, que sai agora das escolas, é especial para si?
Eu tenho tanta esperança nesta geração! Não gosto nada quando os criticam. Eles têm tanta coisa, têm de fazer tantas escolhas diárias, e ainda assim escolhem ir a manifestações, descobrir o mundo, participar em associações de estudantes… Estão a passar por momentos difíceis, são crises e mais crises, económicas, ambientais, de que não têm culpa, estão a levar com a porcaria toda que lhes calhou em cima e ainda têm força para lutar. E o que é que eles ouvem? “Não vales nada, não dás uma para a caixa na escola, não fazes nada de jeito.” Acredito que é a educação que traz a mudança e o crescimento. Portanto, tenho muita esperança neles.
És uma pessoa de causas?
Sim, a da prevenção do cancro da mama, assunto que às vezes trago à escola. Estou próxima da associação Evita, da Tamara Milagre, vocacionada para pessoas com mutações genéticas que podem eventualmente levar ao cancro, e da Acreditar, onde sou professora voluntária de crianças que estão a viver ou viveram uma situação oncológica. A minha outra grande causa é lutar pela liberdade. Não perdermos nunca este bem mais precioso que temos, e que é o definidor de todos os outros. Sem liberdade, a saúde, educação, o bem-estar geral, a nossa felicidade, estarão ameaçados. Essa é a minha causa maior.