A esmagadora maioria das pessoas começa o dia – pelo menos os dias úteis – com um toque (ou vários) de despertador. Depois disso, os mundos divergem entre os que passam o dia a olhar para o relógio porque não querem gastar um minuto sem sentido, e os que não são escravos do tempo. Se faz parte do primeiro grupo, sabe bem o stresse que é viver constantemente sob a batuta do tique-taque, com horários para tudo, desde o momento em que acorda até se deitar de novo, com a sensação de que não temos tempo para nada e não fizemos tudo o que devíamos. Esta relação disfuncional que passámos a ter com o tempo foi também objeto de reflexão da realizadora brasileira Adriana Dutra, que resolveu fazer um documentário, superinteressante, cujo título é ‘Quanto tempo o tempo tem’. Convidou sociólogos, jornalistas, cientistas, que nos fazem olhar para a nossa relação com o tempo… ao longo dos tempos, e ajuda-nos a perceber melhor como chegámos até aqui.
Logo de início, ouvimos a voz da cineasta a dizer que tem “a sensação de que o tempo passa tão depressa que deixa a árvore de natal montada no armário de um ano para o outro, como se o tempo tivesse encurtado, ficado mais rápido. Tudo sugere velocidade, urgência, e eu, por mais que me divida e me multiplique em vários, não tenho tempo para a demanda do meu trabalho, para ler todos os livros e ver todos os filmes que me interessam, responder a todos os emails, nem tenho tempo para dormir as horas que desejo, nem estar ao lado daqueles que amo. E, sinceramente, nem tenho tempo para fazer esse filme”, remata.
Não temos tempo para o tempo. Às vezes, olho para o meu gato e invejo o vagar com que demora a lavar-se, a preguiçar à janela, a cheirar uma flor de vários ângulos. Até à Natureza demos corda para acelerar. Apressamos o crescimento dos animais com químicos, não damos tempo de pousio aos terrenos agrícolas…
Uma invenção da era industrial
Como e quando a nossa relação com o tempo se transformou assim tanto? A resposta: no século XIX, quando a industrialização nos veio impor um ritmo de vida marcado pelo relógio de ponto, pela disciplina e horário das fábricas. Um dos convidados do documentário, o sociólogo italiano Domenico de Masi, diz “a vida industrial que começou na segunda metade do séc. XVIII e vai até metade do séc. XX, é uma vida baseada em etapas, uma idade para estudar, uma idade para trabalhar e os dias de descanso. Durante o dia ainda temos as horas para trabalhar, as horas para dormir e as horas para descansar. É a divisão industrial da vida. Atualmente, estamos na idade pós-industrial, em que produzimos bens imateriais, informação, serviços, valores, estética, portanto não existe horário de trabalho”. Hoje, o nosso tempo é subdividido em pequenas parcelas, contrapõe o especialista em cibercultura Erick Felinto, “existe uma cobrança cultural, social, que nós temos de usar bem o nosso tempo, o que não significa, como no modelo grego, pensar, mas sim usar esse tempo para produzir coisas”. E em jeito de remate, o jornalista Arthur Dapieve lembra que hoje, mesmo nos nossos tempos livres, produzimos conteúdos inconscientemente para outros. Como? Nas redes sociais, o que dá lucros a grandes magnatas que são donos do Facebook, Instagram e Twitter. Por isso, até mesmo no nosso tempo supostamente livre estamos a trabalhar, a enriquecer outros.
Vivemos numa era tecnológica em que quase nem conseguimos acompanhar as inovações, quando compramos uma televisão ou um telemóvel de última geração, passados uns meses já são da velha guarda, dando-nos a impressão de que o que temos em casa não presta, é sucata velha. E já reparou que “temos máquinas que nos poupam tempo (computador, carro, avião, telemóvel), máquinas para enriquecer o nosso tempo (rádio, televisão, dvd, videogames), de programar o tempo (despertadores, cronómetros, agendas eletrónicas), e mesmo assim continuamos em estado de alerta, esperando sempre a próxima urgência?”, lembra-nos a cineasta Adriana Dutra.
Aceleramos a nossa vida e até a Natureza, damos químicos aos animais para crescerem mais depressa e não deixamos os terrenos agrícolas fazer o pousio…
Vidas ao minuto
Este ritmo de vida sincopado, marcado pelo tempo acelerado, veio dar origem àquilo a que os especialistas anglo-saxónicos chamam de ‘time anxiety’, uma ansiedade relacionada com a passagem do tempo e pode ser vivida de maneiras diferentes. “Conhece a série ‘The Good Doctor’, em que a personagem principal põe vários alarmes no telemóvel para cronometrar a sua rotina matinal? Comigo acontecia algo parecido”, conta Fernanda Pinheiro, 40 anos. “Tinha alarmes no telemóvel para várias situações ao longo do dia, desde o acordar, claro, até o alarme que me avisava que devia estar a sair de casa para não apanhar trânsito, ou o alarme para mandar uma mensagem à minha mãe a saber se ela estava bem, ou o toque para me avisar de que o tempo alocado para uma tarefa tinha esgotado ou estava na hora de arrumar as coisas para ir buscar os miúdos à escola. E o estranho é que achava que aquilo me ajudava a não desperdiçar tempo. Só me apercebi da doideira quando fomos obrigados a ficar em casa no primeiro confinamento, quando os alarmes tocavam incessantemente ao longo do dia. Estava tão à toa e com crises de ansiedade que recorri à ajuda de um psicólogo. Foi fundamental para o meu equilíbrio, e foi com essa ajuda que percebi a importância de perder tempo comigo, que não é perder, é ganhar. Com o regresso ao trabalho, receei voltar ao mesmo rame-rame e aquela sensação de perder tempo voltou mas com mais autocontrolo.”
Quem espera, desespera
E Maria Serra, 41 anos, é exemplo disso, não gosta de perder tempo, e detesta que lhe digam que a pontualidade é sobrevalorizada. É tão obcecada em chegar a horas que chega sempre antes de tempo. “Sempre fui muito pontual e sofro um bocado porque em Portugal não há muito esta cultura de chegar a horas a encontros, sejam eles pessoais ou profissionais. O meu problema é que eu sou a ‘pontual pessimista’, que é como quem diz, antevejo mil e um contratempos hipotéticos que poderão impedir-me de chegar a horas aonde quer que seja, por isso quero sair cedo de casa. O meu marido é que odeia esta minha mania. Mesmo nos jantares de família ou de amigos, tenho de chegar 10 minutos antes da hora, reuniões profissionais, pelo menos 15 minutos. A ideia de poderem estar à minha espera perturba-me, assim como me chateia imenso ter de esperar pelas pessoas. Cinco minutos tolero, mais do que isso já fico em brasa. Deixei de me dar com uma amiga que dizia ‘estou a chegar’, quando nem tinha saído de casa, punha-me os nervos em franja, acho mesmo uma falta de respeito por mim e pelo meu tempo. A pandemia suavizou um pouco esta minha obsessão, não só porque deixei de ter tantos encontros familiares ou profissionais (risos) – embora haja quem chegue atrasado às reuniões zoom, acha normal? – mas também me fez tomar dois tipos de atitude: por um lado, passei a avisar as pessoas que só espero 15 minutos, passado esse tempo vou-me embora, e, por outro, deixei de ficar obcecada em chegar muito tempo antes da hora marcada, sobretudo com familiares e amigos. Permiti-me fazer um cálculo mais realista do tempo que levo a chegar a qualquer sítio. É um trabalho em curso, não é líquido que isto aconteça sempre, mas tenho de confessar que ao ter passado a frequentar aulas de (tele)ioga me ajudou bastante, no foco, na respiração, na minha organização mental e assertividade.”
Ansiedade a 3 tempos
Identificou-se com os testemunhos de Fernanda ou Maria? Se a resposta for sim, o mais certo é que sofra também da tal ‘time anxiety’, ansiedade relacionada com a passagem do tempo. Como a forma de reagirmos aos problemas com o tempo não é igual, os especialistas classificaram este tipo de ansiedade de três modos distintos: a primeira é a chamada ‘ansiedade diária’, que tem a ver com a sensação de que o dia não tem horas suficientes para conseguirmos fazer tudo a que nos propomos, o que nos deixa angustiadas, sobrecarregadas e stressadas; a segunda tem a ver com a preocupação com o dia de amanhã, com o futuro, em que a pessoa se questiona muito sobre o que poderá suceder, se falhar ou se alguma coisa má acontecer. Interroga-se também sobre se o que fez até àquele dia é suficiente para garantir um futuro, o que muitas vezes leva a sentimentos de culpa. E por fim temos a ansiedade relacionada com o ‘tempo existencial’, ou seja, ficamos ansiosos pela simples razão de que a nossa existência tem um tempo finito, e receamos não estar a ‘gozar’ esse tempo com um propósito, sentimos que o tempo se esvai sem sentido.
Como combater
Antes de mais, temos de ter consciência de três factos: que o tempo existe, que não o podemos fazer parar, mas podemos acelerá-lo ou, mais importante, desacelerá-lo, ou pelo menos fazer com que tenhamos essa sensação.
“Há uma urgência em preencher o tempo para que este não seja sentido como desperdiçado, é o receio de não ser produtivo, e às tantas o tempo passa e somos incapazes de desfrutar do presente.”
Susana Luz, psicóloga clínica
Para a psicóloga clínica Susana Luz, “o tempo, apesar de ser uma constante, é subjetivo porque não passa igual para todos. A nossa percepção do tempo aumenta ou diminui dependendo de coisas como as atividades e emoções que experimentamos ao longo do dia. Por exemplo, um estudo realizado no Reino Unido revelou que durante a pandemia as pessoas mais jovens sentiram que o tempo passava mais rápido e isso estava relacionado com a satisfação proveniente da interação social, com níveis de stresse mais baixos e dias preenchidos com várias atividades”. Para evitar entrar em ansiedade com a sensação de falta de tempo, a psicóloga clínica aconselha os seguintes passos:
- Planeie o seu dia com intervalos de tempo sem restrição horária;
- Dê significado às suas emoções, reflita o porquê de estar a sentir estas emoções e não outras;
- Utilize o humor para lidar com a pressão do tempo, o humor favorece a neutralização do nosso stresse e da nossa ansiedade;
- Reflita sobre como experienciaria determinada atividade se não tivesse limite de tempo, e experimente descrever como se sentiria;
- Pondere hipóteses alternativas às suas rotinas;
- Reflita sobre as vantagens e desvantagens relacionadas com a expressão da ansiedade relacionada com o tempo;
- Reflita como seria desfrutar mais o presente aqui e agora.
Mais ferramentas
Deixamos-lhe aqui outros conselhos e técnicas complementares, aconselhados por especialistas americanos, que podem ajudar:
- Aprender a respirar corretamente, e sobretudo a respirar profundamente sempre que estamos a sentir-nos controladas e apertadas pelo tempo. Inspirar lentamente através do diafragma (nada de levantar os ombros, ponha uma mão sobre o diafragma e sinta-o a distender, a ‘abrir’; e depois expire lentamente também, contraindo os músculos do diafragma). Pode fazer este exercício de minutos 2-3 vezes ao dia.
- Depois pode ainda pensar no que para si é tempo bem passado, tanto no trabalho (que tipo de tarefas a fazem sentir bem quando as completa), como com a família e amigos (com quem gosta de passar o tempo), que tipo de hobbies a descontraem e que atividades lúdicas lhe dão prazer.
- Quando planear o seu dia, não seja exageradamente otimista a pensar que consegue fazer mil e uma coisas em pouco tempo, ao não conseguir concretizar esse objetivo vai criar ansiedade e tristeza. Pelo contrário, seja pessimista, ou melhor, conte com tempo para reflexões mais ponderadas, para problemas que sejam mais difíceis de ultrapassar, os imponderáveis. Se conseguir fazer antes de tempo, isso vai dar-lhe uma sensação muito positiva e alívio.
Para terminar da melhor maneira, deixamos mais uma citação do documentário de Adriana Dutra, desta vez da monja budista Coen Sensei, que faz todo o sentido: “O tempo é precioso, viver com intensidade é a coisa mais preciosa, apreciando a vida, cada momento da existência.” Vamos desacelerar e cuidar de nós?