Daniel Sampaio (Fotos: João Lima)

O psiquiatra Daniel Sampaio recebe-nos no escritório de sua casa. Uma divisão em que facilmente o imaginamos a ouvir as centenas de CD que estão dispostos – por ordem alfabética, revela-nos – num móvel feito à medida, a escrever ou ler as centenas de livros nas prateleiras que forram as paredes deste ‘refúgio’. Junto à janela, o quadro que um dos netos, cenógrafo, lhe ofereceu e que junta pintura e fotografias da família. Depois da sessão fotográfica, sentamo-nos para falar e a sua voz, tão distinta e facilmente identificável, desacelera-nos com a calma tão característica. Um, dois, três, gravar…

O que o levou a escrever um livro sobre amor que é, ao mesmo tempo, ficção mas que também é pedagógico?Decidi escrever sobre este tema porque fui fundador da Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar, acompanho casais há muitos anos e verifico que há uma grande instabilidade na relação conjugal – falamos agora do homem e da mulher, que é mais frequente e a que é abordada no livro. Temos uma taxa altíssima de divórcios, há muitas pessoas que têm dificuldade em manter o seu relacionamento amoroso. E, portanto, resolvi refletir sobre isso e pensei em pôr uma parte teórica, porque sou psiquiatra. A parte pedagógica, digamos assim, tem a ver com a teoria da vinculação, é muito interessante e achei que era importante escrevê-la para o grande público.

A história ficcionada é a de João e Luísa, casados há 50 anos, em que ambos têm casos extraconjugais, e depois descreve também casos de relações mais curtas em conflito…
Quis escrever a história de uma relação que tem início nos anos 70 até às suas Bodas de Ouro. O objetivo é passar a mensagem que numa relação longeva é inevitável que haja várias crises, que as coisas não estão sempre bem, e que, em muitos casos, é possível ultrapassá-las. A minha ideia é que há muitos divórcios que são evitáveis se as pessoas conseguirem falar sobre os problemas e, eventualmente, pedir ajuda.

As pessoas confundem a paixão com amor?
Sim! É difícil explicar a paixão. Há razões de ordem bioquímica, de personalidade de cada um, as circunstâncias da vida, que nos faz ficar atraídos por uma pessoa, mas essa fase é de curta duração. O que se passa é que, a partir daí, se a pessoa quiser continuar com o seu par romântico tem de construir uma relação, que é o amor. O amor é uma construção. Nós não ficamos amorosos por uma pessoa, ficamos apaixonados e depois conseguimos criar uma relação que é sobretudo baseada no património comum. No livro, João e Luísa viveram juntos o 25 de Abril, o 1.º de Maio, a candidatura presidencial, o nascimento do primeiro filho, a ida do primeiro filho para a escola, tiveram a sua vida profissional, durante a qual surge a grande crise, depois o aparecimento dos netos… uma longa vida em que continuaram juntos porque souberam construir uma relação e ultrapassar a crise.


Na sua experiência como terapeuta, o que é mais corrosivo numa relação a dois?
A maneira como as pessoas se tratam. É uma coisa muito simples, mas temos de passar essa mensagem. As pessoas têm que se tratar com amabilidade e gentileza. Numa relação conjugal é normal haver divergências, discordâncias, discussões, mas é muito importante assinalarmos as divergências de uma forma gentil, tranquila, num tom de voz que não é gritado. Há muitos casais que fazem do combate a razão da sua existência, porque andam numa lógica que um tem de ganhar. Numa discussão em casal, não há vencedores nem vencidos.
O que o casal deve fazer é conversar, analisar bem porque está junto. Não se separar à primeira crise, ver se conseguem mudar o seu relacionamento para melhor. É muito importante não deixar escalar a zanga, aquilo a que nós chamamos mesmo escalada simétrica, em que um grita e o outro grita, em que um insulta e o outro insulta. Isso é muito frequente agora e começa logo no namoro adolescente.


Falou há pouco na teoria da vinculação, o que é?
Numa relação que se pretende estável, o par romântico funciona como segurança psicológica um do outro. A teoria da vinculação, de uma forma muito simples, diz-nos que o bebé liga-se aos pais à procura de segurança. Esta teoria foi criada por John Mostyn Bowlby nos anos 60 e nos anos 90 começou-se a pensar que talvez houvesse algo semelhante no par romântico, se quando nos ligamos de uma forma mais duradoura a uma pessoa a segurança psicológica é importante. Verificou-se que sim, há estudos que dizem que o ingrediente principal que mantém as pessoas unidas é a segurança psicológica que transmitem uma à outra. Dito de outra forma, todos nós temos momentos em que estamos vulneráveis, humilhados, ofendidos, em que fomos maltratados, incompreendidos. É muito importante ter uma pessoa ao nosso lado que nos possa escutar e transmitir conforto e segurança psicológica. Essa é uma das bases para que a relação se mantenha: poder contar com o outro. Em muitos casais de hoje, isso não chega a acontecer porque as relações duram pouco tempo e essa confiança não se consegue estabelecer.

Essa vinculação, ou a falta dela, é o que nos torna também pessoas seguras ou inseguras?
É exatamente a mesma coisa. A teoria de vinculação demonstrou que havia pais que não transmitiam segurança aos filhos, em que o bebé começava a chorar e a ficar inquieto. Chama-se vinculação insegura. O mesmo se passa no par romântico. Há pessoas que são muito ansiosas na relação. Isso verifica-se logo nos primeiros namoros. São aqueles jovens com 17-18 anos que estão sempre preocupados com o que o outro está a fazer, são muito ciumentos, mandam muitas mensagens, sempre a perguntar ‘onde é que estás’, ‘o que é que estás a fazer?’, muito ansiosos. Depois há as evitantes, ou seja, pessoas que são mais centradas em si próprias, têm dificuldade em criar uma vinculação segura, porque estão sempre a fugir da intimidade e da proximidade. Quer sejamos mais seguros, mais evitantes ou mais ansiosos, é importante as pessoas poderem refletir e modificar.

“É muito importante ter uma pessoa ao nosso lado que nos possa escutar e transmitir conforto e segurança psicológica.”

Percebe logo se um casal tem futuro ou se já não há nada a fazer?
Nós fazemos sempre 3 sessões de avaliação. Nunca propomos uma terapia sem falar 3 vezes com o casal. Se o casal participar com vontade e comunicar, nós ficamos com uma ideia de onde é que devemos trabalhar e se há hipótese de criar um espaço de liberdade, o que é importante. Há casais que estão presos por circunstâncias muito especiais. Uma vez ajudei um casal, ela não queria continuar a relação e ele disse que se ela o deixasse se matava. Ela ficou completamente presa a isso, não queria continuar a relação mas tinha medo que ele se suicidasse porque era amiga dele. Felizmente não havia filhos. Quando chegou à consulta, ele disse logo ‘não vale a pena continuarmos, porque aconteça o que acontecer nestas sessões se ela se separar de mim, mato-me’. Evidentemente foi preciso trabalhar junto dele e dela a alternativa ao suicídio, depois o casal separou-se e ele não se suicidou. Ou seja, ele teve um espaço de alternativa que não era o suicídio, como ele tinha pensado no início.

As mulheres e os homens veem o amor e a paixão da mesma forma?
Não, as mulheres são muito mais abertas a falar das suas emoções. Os homens são mais fechados. Há muitas queixas dos homens do ponto de vista da relação sexual, as mulheres falam mais do respeito, da intimidade, da gentileza, das tarefas domésticas. A partilha das tarefas domésticas é uma área que nós temos que trabalhar. Há muita ideia de que as pessoas se separam por razões complicadas, mas muitas vezes é por causa do dia a dia. O quotidiano é muito difícil, há pouca amabilidade, pouca gentileza, muita discussão. Outra questão muito importante no casamento é a perda do mistério. No início da relação não se conhece a maneira de ser do outro, o corpo do outro, portanto, há uma fase de mistério que é muito importante. Esse mistério depois quebra-se, é inevitável. É preciso pensar que temos que surpreender a pessoa que está connosco, não podemos deixar instalar a rotina.

A rotina mata as relações?
Há muitos casais que têm uma vida completamente rotineira: casa, trabalho, casa, tomar conta dos filhos… o espaço do casal desapareceu completamente. Eu trabalho sempre uma coisa clássica em terapia de casal que é o ‘eu, o tu e o nós’, ou seja, o espaço dele, o espaço dela e o espaço do casal. Há casais em que o espaço do nós desapareceu, não têm nenhum tempo para si próprios, não se organizam para estar um com o outro. Não há uma atividade conjunta, não constroem uma vida em conjunto sem os filhos. Para o casal sobreviver, tem que gostar de estar um com o outro e tem de criar esse espaço conjunto.

Os casamentos passam pelas mesmas fases problemáticas?
A crise do casal do livro é aos 10 anos mas costuma dizer-se que é por volta dos 7, o que corresponde já a um crescimento dos filhos. Quando os filhos são bebés, o casal está muito focado no bebé. Quando já têm uma certa autonomia, o casal volta-se para si próprio, interroga-se e muitas vezes pensa que não quer continuar. Há pessoas que têm pavor de ficarem 50 anos casados.

Tanto homens como mulheres?
Penso que mais homens, eles sexualizam muito a relação. Aquela ideia da monogamia, de ficar com a mesma mulher toda a vida, para alguns homens novos é um pouco assustadora. É cultural. Nos anos 50-60-70 era aceite que o homem pudesse ter uma amante, se fosse a mulher seria muito criticada socialmente. A situação agora é mais igualitária. Eu pus isso no livro, os dois a serem infiéis porque me interessava discutir a questão da fidelidade e mostrar que tanto o homem como a mulher podem ser infiéis.

Na sua história, ela confessa a infidelidade, ele não…
Essa é uma grande questão. Perguntam muito, deve-se ou não contar, mas não há uma resposta universal para isso.

A sexualidade é algo muito debatido nas consultas?
Sim, sobretudo trazido pelos homens. É preciso explicar que a sexualidade se torna diferente, mas que é sempre importante. Mesmo nos casais velhos, eu lembro-me sempre de um jovem de 18 anos que descobriu que os avós tinham relações sexuais, achava que não era possível. A sexualidade das pessoas mais velhas existe, tem é características diferentes. A sexualidade é uma força muito grande em todos nós e no casamento é muito importante. Nos casais mais velhos é em parte substituída pela ternura. Mas a intimidade física continua a ser muito importante nos casais que funcionam bem.

Há quem procure que seja sempre fogo de artifício?
Isso tem a ver com o mistério. A sexualidade também tem que ser surpreendente, ou seja, o casal não pode cair numa sexualidade rotineira. Às vezes, os casais fazem amor sempre no mesmo dia, à mesma hora, da mesma maneira… isso mata o erotismo do casamento, é preciso reinventar, mudar de cenário, e é preciso sobretudo envolvimento.

O Tinder faz 12 anos, tem sido benéfico ou pernicioso?
Não é sempre pernicioso. Há pessoas que têm muita dificuldade em estabelecer uma relação duradoura. O título do meu livro é inspirado em Camões, ‘Para tão curtos amores, tão longa vida’. Não tenho qualquer intuito moralista em criticar esse tipo de relação. O que eu acho é que muitas dessas pessoas, que têm curtos amores, anseiam por ter uma relação estável. No meu consultório, tenho vários homens e mulheres que estiveram nas plataformas onde encontraram uma relação estável e consideraram isso um ganho. Mas as relações ocasionais, através das plataformas, também são fontes de prazer e bem-estar. A nossa posição é tentar compreender, não moralizar.


Amor não é poder, domínio ou controlo do outro. As pessoas precisam de lutar pela liberdade no amor.”

O que é fundamental para um relacionamento amoroso ser feliz e ter futuro?
O mais importante de tudo é a construção daquilo que chamo ‘património comum’: a casa, os filhos, a partilha profissional, a viagem, os amigos. Tudo isso faz com que a relação de amor se construa, isso para além da sexualidade. Essa é uma construção em que é preciso as pessoas trabalharem, chama-se mesmo o ‘trabalho do amor’, não tenho outra maneira de dizer.

Quais são os sinais de alerta numa relação?
A violência, física e psicológica. Quando há violência psíquica e física esse casal tende para a separação, e pelo menos é obrigatório que um deles ou os dois façam terapia. Não se pode pactuar com a violência e há violência psicológica muito grave: desrespeito, de controlo, de submissão, de obrigar a mulher a submeter-se ao homem, de críticas muito contundentes. Aí acho muito difícil as pessoas poderem continuar juntas.

Acha positivo que se comemore o dia de São Valentim?
Acho sempre bem que se comemore o amor. Em Portugal fala-se pouco destes temas. O livro está na 4.ª edição, felizmente tem tido muito êxito porque é sobre amor.

Não falamos de amor o suficiente?
Não, é muito importante começarmos logo a ter educação sexual na escola. Muitas pessoas pensam que é falar sobre a pílula e preservativo – que é obviamente fundamental explicar – mas é muito importante falar do relacionamento entre as pessoas, da gentileza, do respeito. O amor tem que se basear justamente nessa gentileza e nesse respeito. É importante que se comemore os dias importantes, para poderem pensar um bocadinho na sua relação e como melhorá-la. Os homens esquecem muito.

O que o preocupa nos amores mais jovens?
A violência no namoro. Há um grande controlo através do telemóvel, muita falta de consideração pelo outro e pela sua liberdade, há reparos acerca da maneira de vestir, da maneira como fala com outras pessoas, dos encontros que tem… chega a haver perseguição. Isso é uma coisa que deveria ser trabalhada nas aulas de cidadania, sem medo: o que significa namorar; o que significa um relacionamento entre um rapaz e uma rapariga, ou entre 2 rapazes ou 2 raparigas…

Um dos ídolos de adolescentes rapazes é uma pessoa com uma postura violenta e um discurso misógino…
Ainda bem que fala desse Andrew Tate. Tenho dois rapazes no consultório que são fãs, dos valores do poder. É o oposto do que é o amor. Como as pessoas sentem instabilidade nas relações afetivas, as mensagens simplistas, de dominação, de controlo, são apelativas. Por isso é que a extrema-direita cresce na Europa. O amor não é matemática, não há respostas definitivas, as pessoas têm de lutar pela liberdade no amor.

O tema da nossa edição é amor e desamor.
O luto é importante quando acaba uma relação?
Quando foi significativa, sim, mas muitas vezes as pessoas precipitam-se para outra que normalmente não resulta, já que ainda estamos ligados à pessoa anterior. Muitas vezes repetem-se comportamentos errados porque não foi feito um trabalho interior. Depois de uma relação significativa precisamos de perceber o que se passou e o que é que se pode corrigir numa relação futura.


A mais recente obra de Daniel Sampaio, ‘Para Tão Curtos Amores, Tão Longa Vida’

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