Mónica estava ansiosa por aquele passeio. Quinze dias antes tinha dançado o ‘Lago dos Cisnes’, no papel de bailarina principal, num sarau em Londres e apetecia-lhe descomprimir. Morreu na viagem, num acidente de viação, aos 18 anos. Maria Emília Pires, a mãe, foi-lhe encontrar, marcada na agenda, a ordem decrescente da ansiedade para o ‘grande dia’: ‘Faltam 10 dias’, ‘. três dias’, ‘. dois dias’. Nunca tinha pensado na morte antes, só quando ela veio ter consigo da pior maneira, confessa esta mãe. Tentou perceber o porquê de tudo aquilo. ‘Precisava de saber para onde tinha ido a energia dela. Não se podia ter perdido assim! Nos primeiros tempos a minha vontade era ir ao cemitério, abrir aquilo tudo, tirá-la de lá e soprar-lhe vida de novo.’ Não se sentiu capaz de celebrações natalícias nos dois primeiros anos. Para não desiludir os outros filhos, o primeiro Natal foi convertido em férias na neve. No segundo, foram à Eurodisney.
Quando a professora do filho, de oito anos, lhe pediu para fazer uma composição sobre o Natal, o rapaz escreveu: ‘Em minha casa não há Natal desde que a minha irmã morreu.’ A professora ficou chocada e chamou a mãe. ‘Percebi que eles queriam o aconchego da árvore de Natal. Estava a dar-lhes tudo o que um jovem deseja, mas fora de época. No terceiro ano já consegui fazer a festa, com muita lágrima à mistura.’ Entretanto passaram 13 anos. ‘O luto nunca está feito; aprende-se é a viver com a dor e a retirar coisas positivas dela’, diz.
ELE É O MEU ANJO-DA-GUARDA’
Emília Agostinho tem um ponto em comum com Maria Emília: também perdeu o filho num acidente de viação, juntamente com o marido. O Rodrigo tinha sete anos. Já lá vão 18, mas ainda se lembra das conversas insistentes que o filho fazia pouco antes de morrer. ‘Dizia coisas como: ‘Vou ver-te e defender-te sempre. Tu não me vês mas eu vejo-te. O sítio para onde eu vou é tão bonito! Eu sei, porque vou lá de noite. E vais casar outra vez e ter um bebé, mas tomo conta dele’.’ Na véspera do acidente Rodrigo disse-lhe que tinha sido bom estar com ela, porque no dia seguinte se ia embora para sempre com o pai. ‘Dão–nos calmantes, andamos atordoadas no velório e no funeral. Quando chegamos a casa, não conseguimos aceitar, parece um sonho mau. Depois cheguei à conclusão de que nunca mais ia ver o meu filho e tinha ataques de pranto.’
‘QUERIA IR PARA JUNTO DELE’
Durante um ano não tirou sequer os lençóis da cama do filho, manteve-lhe o quarto como estava, zangava-se se a empregada entrasse e mexesse em alguma coisa. Não dormia. O corpo cedeu à dor e mandaram-na para casa de baixa. ‘Não queria viver, queria ir para junto dele’, recorda-se. Sentia-se sozinha com uma dor que mais ninguém parecia entender. ‘As pessoas queriam ajudar-me, mas mudavam sempre de assunto quando eu falava disso. Diziam que tinha de seguir em frente, que eu era nova e que iria ter mais filhos, mas isso é tudo o que não queremos ouvir. É por isso que os grupos de ajuda são bons.’
Dois anos depois do acidente, casou outra vez e teve o João Diogo, hoje com 16. Tem a noção de que o protegeu por ter perdido o Rodrigo. ‘Se ele se atrasasse uns minutos, já ficava aflita. Até que ele me disse que percebia que eu já tinha perdido um filho mas que não podia levar a vida à sombra disso.’ Agarrou-se à fé para aceitar que o Rodrigo talvez soubesse o que ia acontecer, sem medo. ‘Acho que ele está sempre ao pé de mim e que é o meu anjo-da-guarda.’ Em 2004 entrou para a associação A Nossa Âncora, onde trabalha a tempo inteiro e é moderadora de grupos de pais em luto. ‘Aqui temos a certeza de que há gente que ouve e entende.’
BÓIA DE SALVAÇÃO
Foi por causa da sua experiência de luto que Maria Emília Pires, a mãe de Mónica, fundou A Nossa Âncora, a associação que ajuda pais como ela a enfrentar esta ‘dor incomparável e antinatura’. Um ano após a perda da filha, já atendia telefonemas e cartas de outros pais em sua casa. ‘Tinha de fazer isto para continuar a viver. Era o que a Mónica queria. Tinha de dar um sentido àquilo que não tem’, lembra.
Dos 1700 pais que já passaram pela associação, Maria Emília conhece de cor os primeiros 800 casos. Recebem uma média de cinco telefonemas por dia e dão apoio nacional a mais de 1000 pessoas. São contactados por gente que perdeu filhos há uma semana, há dois meses e até há 20 anos. ‘A maioria ainda está a tentar perceber o que é que lhe aconteceu. O ideal é contactarem-nos um mês ou dois depois’, explica Maria Emília.’ Há quem procure apenas a linha telefónica de apoio. Os que vão às reuniões de entreajuda, que têm entre cinco e doze participantes, podem contar com duas horas de partilha de experiências entre pais, moderados por quem já fez o seu luto paterno positivamente. ‘São temas difíceis. Tentamos que todos falem. Não são grupos de mortos e sim de vivos. Choramos muito, mas também nos rimos’, conta Maria Emília. São mais as mulheres que os procuram. Muitas aparecem em segredo, porque os maridos não as deixam ir. ‘Aguentam mais a família em luto do que os homens. Quando são eles a procurarem-nos, é porque elas estão muito mal.’ Em muitos casos a família desmembra-se. ‘80% dos pais que perdem filhos divorciam-se. A mãe acha que o pai não vai ao cemitério, por isso não está a sofrer como ela. Os homens refugiam-se no álcool, no tabaco, no trabalho’, observa Maria Emília. São também mais elas quem arrasta o sofrimento auto-infligido, diz Abílio Oliveira, doutorado em Psicologia Social, autor de estudos sobre a morte e vice-presidente do Núcleo de Estudos sobre o Suicídio, a colaborar com A Nossa Âncora. ‘São moralmente julgadas se demorarem pouco tempo a resolver o luto ou se não o mostrarem.’
SER MAIS FORTE QUE A DOR
‘O luto pode ser um processo de cura, e aquele que o ultrapassa transforma-se para melhor’, diz Abílio Oliveira. Mas a ferida não fecha para todos. Há pais que se suicidam ou o tentam, outros que procuram no ocultismo a comunicação com os filhos perdidos, outros que definham física e mentalmente à sombra da dor. ‘Consideram-se os mais infelizes do mundo, acham que não podem ter um momento de prazer, não saem de casa’, conta Maria Emília. ‘Isso é uma forma de egoísmo’, conclui. Abílio fala do luto que se arrasta como doença. ‘Teoricamente, o processo demora entre três meses e um ano. Quando a pessoa não ultrapassa a dor nem recupera uma vida social, familiar e pessoal, falamos em luto patológico. Nota-se um comportamento agressivo, irritabilidade. Em casos graves, nem conseguem sair de casa, despedem-se, abdicam da família.’ Um luto patológico pode, no extremo, levar ao aparecimento de cancro’, conclui Abílio Oliveira. Não são raras as depressões graves e muitos pais vão parar às consultas de psiquiatria à procura de remédio para a dor emocional. Mas será que há exagero de medicamentação para tratar pais em luto? ‘Numa fase crítica, pode ser útil receitar antidepressivos. Mas um médico consciente tentará que essa fase seja a mais curta e menos intensa possível. Existem alternativas’, adianta ainda.
A cura começa na própria pessoa. Manter-se ocupado e retornar ao trabalho o quanto antes é uma das melhores terapias, bem como a criatividade, expressando a dor através da escrita, da pintura, da música. Outros pais saem do transe de desespero quando se lembram que há filhos vivos a precisarem deles. Até lá, é uma situação injusta para os sobreviventes. ‘Inconscientemente, podem até culpar os outros filhos por estarem vivos; acusá-los de, ao contrário do irmão, nunca terem conseguido fazer determinada coisa’, observa Abílio Oliveira. A terapia familiar não está fora de questão nestes casos.
A fé também é um ponto de apoio. Maria Emília, católica praticante, admite: ‘Os pais falam muito do Além, querem acreditar que os filhos continuam vivos. Até os ateus dizem que gostavam de crer.’ Abílio Oliveira avisa, porém: ‘Numa primeira fase, ajuda. Mas a longo prazo, não. Se não conseguirem passar dessa fé cega em dogmas, continuam a cultivar a presença dos filhos pelas razões erradas.’ Regressar ao mundo dos vivos requer algo muito simples mas essencial, para Maria Emília: ‘Temos de querer ser felizes, pensar nos outros e não apenas na nossa dor; continuarmos a gostar de nós, reparar mais em quem nos rodeia.’
ONDE ESTÁ O MIGUEL?
Deolinda Bastos, de 45 anos, também perdeu um filho. Literalmente. Ninguém sabe onde está o Miguel Alexandre Vicente ou porque desapareceu, aos 16 anos, na tarde de domingo do dia 6 de Abril de 1997. Esta mãe sabe que neste mesmo artigo constam histórias de jovens que morreram. ‘Ao menos têm onde pôr flores e chorar pelos filhos. Eu não tenho onde pôr flores ao meu Miguel’, diz. Ao contrário de outros pais, não consegue entender ou dar um sentido ao que não tem. O tempo ainda não a ensinou a viver com a tristeza, mas é preciso ir em frente. Até porque há mais quatro filhos a ajudar, entre os 11 e os 29 anos, todos a viver com ela e com o companheiro, mais os dois genros, uma nora e dois netos, todos no apartamento de três assoalhadas do Bairro dos Alfinetes, em Chelas, Lisboa. E há que seguir todos os dias a mesma luta, que começa às cinco da manhã a caminho do serviço de limpeza do Hospital São Francisco Xavier, onde pega às sete.
‘FIZERAM-LHE MAL…’
Miguel era aluno externo da Casa Pia, no 8.º ano do Colégio Maria Pia. De poucas amizades, só brincava com outro rapaz do bairro. Tinha uma ligação muito forte com a mãe. Preferia ficar em casa a brincar, a ajudá-la e a pregar-lhe partidas. ‘Davam–lhe caixas de bombons e ele guardava-as para mim. Escondia o dinheiro que juntava para me comprar prendas de anos ou de Natal. Dizia que quando acabasse o 9.º ano ia trabalhar, para me ajudar.’ Refere-se ao filho sempre no passado, mas ainda tem fé. ‘Acho que ainda está vivo’, diz baixinho. Os outros filhos habituaram-se a viver à sombra de um irmão desaparecido. Ivo, o mais novo, faz-lhe lembrar o Miguel, diz a mãe. Arlinda, a mais velha, vai buscar o álbum com uma foto do Miguel aos 10 anos. Há oito anos que ela não celebra os anos: 7 de Abril calha um dia depois da data do desaparecimento do irmão. O Natal e o 29 de Novembro, aniversário do Miguel, também se tornaram datas difíceis.
Deolinda torce a manga da camisola enquanto fala, escorrem-lhe as lágrimas ao recordar o sufoco, as datas certas. Deu por falta do filho ao jantar desse dia. O rapaz disse-lhe que ia a casa da tia mas não havia meio de voltar. A última a falar com ele foi uma vizinha da tia, que conta ter visto o rapaz correr para casa. A família fez buscas pela zona oriental de Lisboa, colou fotocópias com a cara do Miguel. Como é hábito, a queixa de desaparecimento só foi aceite na Polícia Judiciária 48 horas depois. Logo depois, deram baixa a Deolinda e receitaram-lhe medicamentos que a deixavam apática. Quando decidiu deixar de os tomar, foi atrás do filho para Espanha. Em Badajoz, a polícia achou estranho o caso não constar dos ficheiros da Interpol. Depois, foi a programas de televisão portugueses, pedir pistas que nunca chegaram.
Ao fim de um ano, o cadáver de um jovem apareceu no antigo prédio da família, que entretanto se mudara para Chelas, e a polícia teve um mau palpite. Mas os testes de ADN a que a mãe se submeteu provaram que o corpo não era o do Miguel.
Os ‘fantasmas’ do rapaz aparecem, agora, relacionados com o escândalo da Casa Pia. Há um ano, a mãe de ‘Joel’ o jovem que denunciou os abusos de Carlos Silvino (Bibi) disse ter visto o Miguel, em 2001, no carro de Bibi, e um colega do Miguel relatou ter visto uma cena semelhante.
A hipótese dos abusos sexuais sempre atormentou esta mãe. ‘Mais depressa se dava com adultos do que com crianças, mas não desaparecia por vontade própria. Enganaram-no e fizeram-lhe mal’, repete a chorar.
Do Miguel só restou um par de patins em linha e meia dúzia de fotos num álbum de família. É com eles que Deolinda mata saudades do filho.
COMO AJUDAR PAIS EM LUTO
Abílio Oliveira, psicólogo e autor de estudos sobre a morte e o luto, dá-nos pistas para auxiliarmos quem passa pela mais terrível das perdas.
Não contornar a questão ou tentar distrair: ‘Devem evitar-se lugares-comuns, como ‘Tens outro filho’, ‘És nova, podes ter mais um’, ‘Vamos passear’.Forçá-los a distraírem-se, numa fase inicial, pode não ser conveniente.’
Saber ouvir e conversar: ‘Ter disposição total para a ouvir, assumindo que não calculamos a dimensão da dor; tentar perceber as reacções desse pai, o que representa para ele aquela morte, ajudá-lo a pôr-se no lugar do filho morto e pensar como ele gostaria que a mãe ou o pai reagissem.’
Encaminhar para ajuda psicológica e assegurar que não há nada de errado nisso. ‘Têm de ser confrontados com a sua tristeza. Só quando chegamos ao fundo do poço temos forças para subir.’
Auxiliá-los no regresso a uma vida normal: ‘Ajudá–lo a perceber que não vai desrespeitar o filho se não estiver em casa 24 horas por dia a pensar na sua morte.’
AS FASES DO LUTO
Fazer o luto é ‘passar através da dor’. Esta ‘caminhada’, como Maria Emília Pires gosta de lhe chamar, é feita degrau a degrau, até ao luto amadurecido.
1 CHOQUE. Um estado de anestesia das emoções e da percepção da realidade. Gritos, lágrimas ou até uma calma aparente são manifestações possíveis.
2 NEGAÇÃO. Tentativa de retardar o sofrimento profundo e resistir à perda através da ideia de que o filho não morreu. Pode manifestar-se com hiperactividade, substituição de quem partiu por um outro, procura de um culpado, apresentação da pessoa que morreu como sendo o melhor, recorrer a drogas ou ter perturbações psicossomáticas.
3 EXPRESSÃO DOS SENTIMENTOS. Os mais comuns são tristeza profunda (sente-se vontade de morrer também), ansiedade e medo do futuro (de perder outros entes queridos, por exemplo), a revolta contra quem morreu, contra o médico, familiares ou amigos, o sentimento de culpa por se acharem responsáveis pela morte (porque ofereceram a mota, não levaram ao médico mais cedo…).
4 CONSCIÊNCIA DA PERDA E PRINCÍPIO DA ACEITAÇÃO. É uma fase de choro profundo, mas de contacto mais directo com os sentimentos que tinha pelo filho morto. Aceita-se, finalmente, que o filho partiu e a cura pode começar.
5 FINALIZAÇÃO DAS TAREFAS que não conseguiram concretizar-se durante as piores fases do luto. Voltar à vida e à realidade, depois do transe de tristeza.
6 DAR UM SENTIDO À PERDA. É um período de ganhos e reflexão. Nos lutos positivos, o pai/a mãe pergunta-se: ‘O que aprendi? Como é que a dor pode ajudar–me a conhecer-me melhor? Que orientação quero dar à vida? Que capacidades descobri em mim?’
7 TROCA DE PERDÕES. Dá-se um fim ao sentimento de culpa; perdoa-se o filho que morreu, por ter desaparecido, esquecem-se os problemas e desavenças do passado.
8 HERANÇA. É fazer o balanço das qualidades que o filho tinha em vida, perceber que continuam a fazer parte de si as recordações, os projectos que ambos concretizaram ou tinham. Entender, como diz Abílio Oliveira, ‘que não há separação possível entre pessoas que se amam.’