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Não deixa de ser irónico pensar que tive de ligar o turbo para escrever este texto sobre viver mais devagar. Não, esta manhã não acordei a saudar o sol, até porque mais facilmente me guio pelas previsões meteorológicas do meu telefone do que tenho tempo para abrir os estores para ver se realmente chove – a única molha de momento é a dos meus pés encharcados em suor dentro de botas em pleno julho. Acordei, fui acordar os miúdos, vesti-me, fui acordar os miúdos, fiz o pequeno almoço, fui acordar os miúdos. O mais velho acordou finalmente, os decibéis já a níveis pouco recomendados. A primeira coisa que disse foi “calma mãe”. Eu dou-lhe a calma, enquanto peço à miúda para ir trocar os calções por umas calças, afinal o telefone é smart e diz que está a chover, não vale a pena ela tentar mostrar-me que o sol brilha lá fora. Simplesmente não há tempo.
Isto é assim todos as manhãs, com sequelas todos os fins de tarde. Calma. A voz do meu filho ecoa, mas não surte o efeito pretendido. É como quando estamos irritadas e nos dizem para falar mais baixo.
O que é que acontece? Aumentamos o volume. Quando começo a trabalhar este tema, acelero em direção ao estereótipo slow-yogi-ovo-lacto-vegetariano-mestre-em-atenção-plena e recordo, num misto de impaciência e divertimento, as preguiças do Departamento de Veículos Mamíferos no filme ‘Zootrópolis’.
Talvez sejam efeitos colaterais do Instagram: quando penso em andar devagar, o meu feed mental é inundado por fotos de homens e mulheres em posição de lótus e galinhas lentas e felizes.
Rapidamente percebo o meu erro e como a leitura superficial típica da aceleração em que vivemos nos leva a conclusões precipitadas. Voltando às minhas manhãs, tenho pelo menos 16 anos de recolha de provas: as crianças não entendem o conceito de pressa. Muito pelo contrário, quanto mais lhes dizemos para se despacharem, mais parecem demorar.
Mas se a evidência atinge o âmago da minha culpa e me faz todos os dias renovar as minhas intenções de abrandar na manhã seguinte, cada novo dia teima em precipitar-se ao ritmo vertiginoso do costume.
No livro ‘Thrive’, Arianna Huffington, fundadora do Huffington Post e da Thrive Global, fala sobre o sucesso de um post em particular, chamado ‘O dia em que deixei de dizer despacha-te’, escrito por Rachel Macy Stafford, uma professora de educação especial e mãe de uma menina de seis anos. “A vida de Rachel, como ela escreve, era controlada por notificações eletrónicas, toques de telemóvel e agendas completamente cheias. Mas houve um dia em que dolorosamente se apercebeu do impacto que isso estava a ter na sua filha, uma criança descontraída do tipo-que-pára-para-cheirar-as-rosas.
‘Eu era uma bullie a pressionar uma criança que queria simplesmente gozar a vida’.” Arianna não tem dúvidas sobre a razão pela qual o post atingiu quase instantaneamente mais de 7 milhões de pageviews e quase 1,2 milhões de likes no Facebook.
“Muitos reconheceram os danos que estamos a causar quando dizemos constantemente, não só às nossas crianças mas também a nós próprios, para nos apressarmos. As crianças estão muito mais ligadas ao momento e menos ligadas às construções artificiais de tempo que nos autoimpusemos.” A minha colega Gisela Henriques, mãe e autodeterminada como eu, percebe as minhas dores e não são raros os dias em que trocamos cromos da coleção ‘loucura matinal’.
Não consigo deixar de pensar no meu filho quando ela me conta a história de um professor amigo sobre um aluno, um jovem de 17 anos que não consegue ver filmes à velocidade normal, só em fast forward.
Nesta altura já o meu médico de pulso, aka smart watch, diz que estou com um ritmo cardíaco acima da média, que não se coaduna com as minhas intenções editoriais do momento.
QUEM MEXEU NO MEU PÃO?
Falar de manhãs loucas em época de férias, seria despropositado, não fossem já habituais as rixas nas intermináveis filas para o pão durante a época estival algarvia. Onze meses de sprint não vão culminar num lindo mês de agosto de paz e amor a passo de caracol. Mas podemos sim aproveitar o tempo à espera da carcaça para refletir na vida e a forma como nos está a passar ao lado, e os dias de folga para sentir na pele os benefícios de viver mais devagar demonstrados num estudo realizado pela Universidade Católica, num desafio lançado pelo Esporão, dando assim início a uma conversa sobre slow living na sociedade portuguesa.
A ideia é, pois, abrandarmos antes de sermos forçados a fazê-lo, como aconteceu a Arianna Huffington, que literalmente colapsou por exaustão e acordou numa poça de sangue depois de cair e bater com a cabeça na esquina da secretária, um momento trágico que a obrigou a usar o travão de emergência e a redefinir as suas prioridades e o significado de sucesso, muito além de conceitos universalmente aceites como dinheiro e poder. “Queremos ser mulheres e homens empoderados a comandar as nossas vidas? Ou queremos arrastarmo-nos por aí como zombies?” Não será por acaso que a Organização Mundial de Saúde tenha decidido reconhecer o burnout como doença em 2017.
Já Carl Honoré travou a tempo de fugir da terra dos mortos-vivos. Soube que algo não estava bem quando se sentiu tentado a encomendar uma coleção de histórias infantis para contar em 60 segundos. Ele, que já roubava pelo menos quatro aos sete anões na hora de contar a Branca de Neve ao filho. Foi aí que o autor da famosa bíblia ‘Movimento Slow’ se interessou pelo tema e uniu sob uma mesma bandeira todas as iniciativas de abrandar que já aconteciam pelo mundo e nas mais diversas áreas, da comida ao sexo. Vivemos por isso num mundo bipolar. Por um lado, interrompemos o ato sexual para atender chamadas, ler emails ou partilhar tweets – é o que faz um em cinco americanos! -, por outro, frequentamos cursos para abrandar as relações sexuais.
O FIM DO FRENESIM INFÉRTIL?
É um clássico, o colega que vai para o corredor da empresa falar ao telefone, a andar para a frente e para trás, num frenesim que facilmente induz em falsas interpretações. O colega até pode estar a combinar uma patuscada para o fim de semana, mas a sua linguagem corporal diz que está a ser produtivo. É o culto do atarefado, do apressado, que todas as manhãs acelera o passo nos últimos 20 metros antes de chegar à secretária, para mostrar aos colegas que faz acontecer. “No mundo do trabalho, talvez o mais resistente à ideia de abrandar, a revolução slow está a crescer rapidamente.” Por todo o mundo as empresas estão a descobrir que trabalhar menos é igual a trabalhar melhor e a saborear o que Honoré chama de paradoxo delicioso: abrandar leva-nos mais rapidamente aos resultados pretendidos.
“A ideia não é fazer o mais depressa possível, mas o melhor possível.” Há uma crescente preocupação com o bem-estar dos funcionários, não porque de repente os empresários se tornaram todos filantropos, mas porque isso se reflete positivamente nos resultados das empresas.
O QUE (NÃO!) FAZER ANTES DE MORRER
Um dos meus maiores arrependimentos como mãe até agora, porque ainda a procissão vai no adro, é de não ter gozado suficientemente os meus filhos bebés.
Lembro-me de, naqueles primeiros meses, querer continuar a fazer TUDO como antes. Hoje, desejo ter vivido essa experiência a 100%, o tal ‘momento presente’ que está na base do conceito de atenção plena, que não é mais do que nos focarmos no que estamos a fazer num determinado instante. Isso teria sido eu a abrandar numa altura em que fazia todo o sentido. Porque viver mais devagar não significa seguir sempre a cadência da tartaruga, há alturas em que temos de ir à velocidade da lebre. Carl Honoré vai buscar à música a noção de ‘tempo giusto’, que significa tempo exato, indicando muitas vezes um regresso ao tempo principal depois de uma alteração de ritmo temporária.
Abrandar implica reajustar ritmos e prioridades, descobrir o que é realmente importante e descartar o resto.
Mas o mundo ainda pertence aos que têm listas de feitos intermináveis para mostrar. Joana Marques, autora do divertido livro ‘Vai Correr Tudo Mal’, não poupa as famosas bucket lists à sua sátira. “Podemos até já estar no leito da morte, que teremos de requerer uma extensão do prazo para ainda despacharmos tarefas como estas”, diz, enumerando alguns dos pontos comuns a essas listas, como escalar uma montanha ou mergulhar com tubarões, “todas coisas que aumentam de modo exponencial a probabilidade de falecermos enquanto as fazemos”.
QUE SE LIXE (PARA NÃO DIZER OUTRA COISA)
Por vez a ideia é mais exterminar do que concluir tarefas. “Quando fiz 40 anos, fiz uma grande auditoria à minha vida e tive consciência da quantidade de projetos com que me tinha mentalmente comprometido: aprender alemão, tornar-me uma boa esquiadora ou aprender a cozinhar. Muitos permaneciam inacabados e a maioria nem sequer tinha começado. Ainda assim, eles sugavam a minha energia e dispersavam a minha atenção”, recorda Arianna.
“Foi muito libertador compreender que podia ‘completar’ um projeto simplesmente desistindo dele eliminando-o da minha lista de tarefas.” O autor de ‘Está tudo F*dido, uma abordagem contraintuitiva à esperança’, define a verdadeira liberdade numa lógica de autolimitação: “Não é o privilégio de escolher tudo o que quer na vida, mas, antes, de escolher aquilo que vai prescindir na vida.” Mark Manso denuncia uma tendência para a “eficiência”, em que as pessoas querem fazer cada vez mais sem se comprometerem verdadeiramente com nada. “A falsa liberdade liga a esteira em direção a perseguir mais. Enquanto a verdadeira liberdade é a decisão consciente de viver com menos. A liberdade falsa é viciante: por mais que tenha, sente sempre que não é suficiente.”
É aqui que decido abdicar do pão.
Abandono a fila ao ritmo das palavras de Arianna: “É fácil, na verdade, perder o sentido real das nossas vidas enquanto vivemos. Até que já não estamos vivos. Um elogio fúnebre é muitas vezes a primeira declaração formal sobre o que foram as nossas vidas, o documento fundamental do nosso legado. É como as pessoas se lembram de nós e como vivemos nas mentes e corações dos outros. E é muito revelador o que não é dito. Raramente ouvimos coisas como: ‘Nunca parou de trabalhar. Almoçava à secretária. Todos os dias’.”
Quando morrer, duvido que digam “Abdicou de uma manhã linda de praia para comprar carcaças para a família.” Saio da padaria à papo seco e caminho (lentamente) em direção a casa para acordar os miúdos. Com calma, já sei.